Dário Cotrim

Rede de Dormir

21/05/2022 às 00:01.
Atualizado em 21/05/2022 às 00:02

No estudo da etnologia dos nossos ancestrais, a primeira vez que a palavra rede de dormir foi rascunhada aconteceu na carta do escrevente da armada de Pedro Álvares Cabral, o escrivão Pero Vaz de Caminha, no dia 27 de abril de 1500. Era a Certidão de Nascimento de nossa terra e que foi enviada ao rei D. Manoel I (O Venturoso Rei de Portugal e Algarves) para registro e posse do lugar. Assim escreveu Caminha sobre “uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam” os índios tupiniquins. 

Então, pouco mais de meio século depois, o uso da rede de dormir tornou-se popular pelos colonos da nova aldeia, pelos lavradores e pelos missionários da Companhia de Jesus. Naquele tempo, as redes de dormir eram feitas com fios torcidos de algodão, com algumas travessas de vara que serviam de reforço e coesão. Na verdade, as redes de dormir tornaram-se aliados dos mamelucos e dos sertanejos.

O índio, de mamando a caducando, fazia dela o seu leito móvel e quando morria era nela envolvido para ser enterrado. Desde o descobrimento que as redes eram utilizadas para dormir, descansar e enterrar os mortos no meio rural e, também, como transporte onde os escravos carregavam os senhores e patroas em passeio para cidade e até em longas viagens.

Na língua tupi-guarani, segundo Hans Staden, os índios falavam em ini para identificar uma rede de dormir. Já o primeiro historiador brasileiro, Frei Vicente do Salvador, expressa que “no rancho de um principal grande chamado iniguaçu, que quer dizer rede grande” e como tal era o seu chefe. Ini = rede + guaçu = grande, então a expressão iniguaçu significa “rede grande”.

A rede balouçante é parte inseparável do povo nordestino. Não é tão somente uma simples peça decorativa, mas também utilitária, como não acontece nas outras regiões brasileiras. Luís da Câmara Cascudo, no seu livro “Rede de Dormir”, descreve com minúcias as utilidades deste propósito numa pesquisa etnográfica completa e acabada. 

Também na minha literatura, certa vez, eu escrevi assim: “sei que ao ronronar da rede preguiçosa, abeira o meu corpo no teu num intenso prazer...”. E eu continuava com o meu poema dizendo: “gosto das redes que me causam pavor e medo, gosto dos balanços que me causam tonturas...”. Aliás, o eminente poeta Casimiro de Abreu, romanticamente dizia que numa noite ele se lembrava dela dormindo numa rede encostada molemente. Por outro lado, Jorge de Lima escreveu que “a mucama de Iaiá tange os piuns, balança a rede, canta um lundum tão bambo, tão molengo, tão dengoso, que Iaiá tem vontade de dormir”. Nota-se que era uma tendência o fingir das usanças desconhecidas. 

Hoje, o significado das redes de dormir está resumido apenas nas deduções sibilinas do ambiente. Configura num balanço relaxante para o nosso corpo, sem o risco da escoliose, num sítio ou em qualquer alpendre rejeitado das vivendas sertanejas. Enquanto isso, a rede de dormir é acolhedora, compreensiva e coleante para a lassidão, com o seu movimento semelhante ao de um pêndulo.

A cama, entretanto, é hirta e sem qualquer mobilidade e de, mais a mais, sem o acalanto onde a nossa alma possa suavizar um pouco do cansaço e da fadiga de nossas obrigações diárias. E ao povo, em coisa de arte, como em tudo mais, é que compete dizer a última palavra sobre as redes de dormir, uma peça pragmática inserida no cotidiano das pessoas. Êta vida boa, sô!

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