Dário Cotrim

Fazendo rendas e tecendo vidas

19/02/2022 às 00:01.
Atualizado em 19/02/2022 às 11:03

“Olê, Mulé rendera. Olê, mulé rendá, tu missina fazê renda, qu’eu ti sino namorá”

Lembro-me, com doces saudades, das tardes domingueiras na casa de minha saudosa avó Mãe-de-Dário que, sentada no recanto da sala, com a sua almofada por entre as pernas, dedilhava os bilros na confecção de rendas. Não havia nenhum barulho senão o estalar dos bilros acochando o fio de algodão nos moldes de papelão.

Ficar sentadinho do seu lado, com olhos de lince para apreciar a propensão de suas mãos no manejo com cada fio que se enroscava na junção com outro fio, era o que eu mais gostava de fazer. Pois “cada fio que se enrosca diz de vidas que se tecem”, considerando-se que era um trabalho de paciência, o que sempre nos causava prazer, alegria e, também, uma grande admiração pela habilidade habitual de minha avó, já tão velhinha, mas tão contente com a sorte de ser uma exímia rendeira. Benza, Deus!
 
“Entre o canto e o bailado dos bilros manipulados, espetava o alfinete em papéis bem desenhados”
 
Certamente que os bilros, os alfinetes e as linhas exigem das rendeiras destreza manual, mas nem por isso elas deixam desanimar-se do labor de fazer rendas e as fazem com se fosse uma brincadeira de menina-moça. No Nordeste, as rendeiras tecelãs fazem rendas ao ar livre, na praia e nas montanhas, sempre em companhia da natureza, pois assim o trabalho se torna uma diversão deleitável e salutar. 

No extinto arraial de Nossa Senhora do Rosário do Gentio, vilarejo onde eu vim ao mundo, várias rendeiras ficavam em frente às suas casas, à tardezinha, na labuta de fazer as rendas mais belas da comunidade. Ainda assim, a minha saudosa vovozinha Mãe-Velha manuseava os bilros em cima de uma velha almofada, cantarolando com a voz anasalada e alheia a tudo que estaria acontecendo em sua volta, pois o contentamento de fazer renda fazia com que ela se encontrasse no mundo da lua. 

Dessarte, com a destreza nas mãos, num ritmo acelerado, a minha vovozinha coadunava as linhas que, sem sentido aparente, se cruzavam para criar uma arte com formas belas, com cores e desenhos em cada tira rendada, haja vista que era uma tira única e rica de detalhes, na perfeição e na beleza das suas obras.
 
“Debruçada na almofada, sentadinha na cadeira, tecendo com mãos de fada entretinha-se a rendeira”
 
A renda foi uma herança do povo português. O livro “A renda de bilros e sua aculturação no Brasil”, publicado por Luiza e Arthur Ramos, em 1948, é uma das principais obras brasileiras debruçadas sobre o tema. A pesquisa realizada aponta que a renda de bilros chegou ao Brasil através de costumes portugueses. A arte teria surgido em Portugal em 1560 e ficou restrita aos conventos servindo a ornamentação litúrgica e, posteriormente, a prática foi ampliada entre as mulheres da região.

Hoje, com a indústria mecanizada, perdeu-se o encanto de se fazer rendas com bilros, em acolchoados. Entretanto, pela valorização as fazendeiras de rendas, no Brasil foi criado o “Dia da Rendeira”, por Ômi Rendero, para o mês de maio, que era o mês das mães e das avós, em especial, o mês de Virgem Maria, a mãe do nosso senhor Jesus Cristo. E por que no seu dia quatro? Isso foi em homenagem às quatro operações básicas para se fechar o ponto da renda. Como dizia Fernando Sabino: “no fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou no fim”. Salve as rendeiras de nossa terra. Salve!

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