Wendell Lessawendell_lessa@yahoo.com.br

Uma perspectiva reformada sobre dois reinos e um só senhorio

Publicado em 30/07/2025 às 19:00.

Em tempos de intensos debates políticos e sociais, falar sobre a relação entre Igreja e Estado é inevitável. Muitos cristãos se perguntam: até onde a Igreja deve influenciar o governo? Até que ponto o Estado deve intervir na vida da Igreja? A tradição reformada calvinista, enraizada nas Escrituras, oferece uma compreensão sólida e equilibrada desse tema, lembrando-nos que há dois reinos distintos, mas ambos sob o mesmo Senhor, Jesus Cristo.

A visão reformada entende que Deus governa toda a criação por meio de dois reinos ou esferas de autoridade: o Reino espiritual (a Igreja) e o Reino civil (o Estado). João Calvino, em sua Institutas da Religião Cristã, escreveu que Deus estabeleceu essas duas jurisdições para que uma cuidasse da vida espiritual e eterna dos homens, enquanto a outra zelasse pela ordem civil e temporal.

Essa compreensão reflete o ensino de Jesus quando, questionado sobre o pagamento de impostos, respondeu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21). Aqui, Cristo não separa Deus de César como se houvesse territórios autônomos, mas mostra que César tem autoridade delegada por Deus (Romanos 13.1). Portanto, todo governo civil está sob a soberania divina, mas possui funções distintas das da Igreja.

Segundo o apóstolo Paulo, “não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas” (Romanos 13.1). O Estado é um instrumento para promover o bem, punir o mal e manter a ordem (Romanos 13.3-4). Ele não é redentor nem mediador de salvação — funções que pertencem unicamente a Cristo e, de forma visível, à Igreja.

A Confissão de Fé de Westminster, documento fundamental para a fé reformada, afirma que o magistrado civil deve proteger a Igreja, garantir a liberdade de consciência e promover a justiça, sem interferir nas funções espirituais que pertencem apenas aos ministros da Palavra e aos presbíteros. Isso significa que o Estado deve assegurar um ambiente onde a Igreja possa proclamar o evangelho livremente, sem coerção ou imposição religiosa, mas também sem que o governo se torne “neutro” em relação à moralidade ou à verdade.

A Igreja, por sua vez, tem um papel profético diante do Estado: anunciar os princípios da Palavra de Deus que orientam a justiça, a dignidade humana e a ordem social. O profeta Amós confrontou reis injustos, João Batista denunciou o adultério de Herodes, e o próprio Cristo afirmou a Pilatos: “Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada” (João 19.11).

Entretanto, a Igreja não foi chamada a governar o Estado. Seu poder não é coercitivo, mas espiritual, pregando o evangelho que transforma corações e, consequentemente, influencia a sociedade. O apóstolo Pedro exorta: “Portai-vos com sabedoria entre os gentios... sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor” (1 Pedro 2.12-13). A submissão não significa servilismo, mas reconhecimento de que a autoridade civil faz parte do plano de Deus para o bem comum.

Se Igreja e Estado têm papéis distintos, isso não significa que cristãos devem se ausentar da vida pública. Pelo contrário, eles são chamados a ser “sal da terra e luz do mundo” (Mateus 5.13-14), testemunhando a verdade de Cristo em todas as esferas — política, educação, economia, cultura.

Na tradição reformada, todo trabalho é vocação diante de Deus. Assim como pastores têm um chamado para o ministério da Palavra, juízes, professores, médicos e políticos cristãos têm um chamado para servir à sociedade com integridade e justiça. O teólogo reformado Abraham Kuyper resumiu isso bem: “Não há um centímetro quadrado em todo o domínio da nossa existência sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘É meu!’”. Isso implica que cristãos podem e devem participar do processo político, elaborar leis, liderar governos — não para transformar o Estado em uma “igreja civil”, mas para promover a justiça e o bem comum, refletindo a ética do Reino de Deus.

Ao longo da história, tanto a fusão indevida entre Igreja e Estado quanto a tentativa de expulsar completamente a fé do espaço público trouxeram danos. A Reforma Protestante criticou a corrupção de uma Igreja que se aliou excessivamente ao poder político, perdendo a pureza do evangelho.

Hoje, vemos perigos semelhantes quando cristãos confundem missão espiritual com projetos de poder terreno. A visão reformada nos lembra que “o meu reino não é deste mundo” (João 18.36). Isso não significa que Cristo é indiferente à justiça social, mas que Seu governo é estabelecido pela Palavra e pelo Espírito, não pela espada ou por decretos humanos.

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