Wendell Lessawendell_lessa@yahoo.com.br

O descanso maduro da alma

Publicado em 22/10/2025 às 19:00.

Vivemos em uma era profundamente marcada pela busca do conforto emocional. A promessa da cultura contemporânea é que o ser humano será pleno à medida que se expressar, se afirmar e se satisfizer — e a alma moderna crê nisso com devoção. O mundo tornou-se, como diria Philip Rieff, uma “sociedade terapêutica”, na qual os antigos referenciais morais foram substituídos por instrumentos de gestão da dor emocional e do bem-estar subjetivo. Nessa nova moldura cultural, o indivíduo é convidado a crer que seu problema maior é o desconforto interior — e que a salvação está em aliviar esse desconforto por meio da autoexpressão e do autocuidado.

Essa visão, no entanto, é nova na história humana. Como mostram Charles Taylor e Carl Trueman, o que chamamos hoje de “self” — essa identidade interior percebida como suprema — é uma construção recente, filha do individualismo expressivo e do abandono da transcendência. O “novo self” não é mais definido por seu lugar no mundo criado por Deus, mas pelo que sente, deseja ou teme. A interioridade é o altar, e a autenticidade emocional é o culto. Em outras palavras, o que sustenta o indivíduo hoje é a crença de que sua alma tem o direito de estar constantemente nutrida, satisfeita e protegida da frustração. A alma se tornou um ventre que não pode mais ser desmamado.

É nesse cenário que um breve e comovente devocional escrito por Abraham Kuyper no século XIX — Como a criança desmamada — soa como um antídoto contra os excessos de nossa cultura. Comentando o Salmo 131.2 — “tranquilo e sereno, como uma criança desmamada no colo da mãe” — Kuyper descreve a diferença entre dois estágios da fé. O primeiro, o do recém-convertido, se assemelha à criança que ainda mama: faminta, ansiosa, inquieta. Ela chora, busca, suga constantemente. Qualquer interrupção no suprimento do leite é interpretada como ausência do cuidado. Assim também é a alma que, no início da caminhada cristã, exige sinais constantes da presença de Deus, consolos frequentes, respostas imediatas.

Mas a maturidade espiritual, diz Kuyper, é como o desmame. A criança desmamada não é abandonada; ao contrário, ela é acolhida pela mãe, mas agora repousa com confiança. Já não exige, apenas descansa. Já não busca o leite, mas a presença. Aprende a esperar, a conter-se, a viver da medida. A alma madura não abandona o amor, mas é um amor temperado com reverência. “Bebe o que a alma pode suportar”, escreve Kuyper. Ela ora, não mais para se aliviar, mas para encontrar Deus. Não busca mais apenas os dons, mas o doador. A alma desmamada conhece o silêncio. E no silêncio há mais reverência do que em muitos gritos.

Essa metáfora desafia frontalmente a espiritualidade da sociedade terapêutica. Para muitos, uma fé verdadeira é aquela que “resolve” as angústias internas de forma rápida. Se a alma está inquieta, deve ser acalmada; se está carente, deve ser suprida. O que se busca é o leite espiritual contínuo — não para crescer, mas para permanecer eternamente dependente. Essa fé infantilizada não tolera o deserto, não compreende o silêncio de Deus, não aceita o “ainda não” da esperança cristã. E por isso, muitas vezes, se decepciona e abandona a jornada.

O novo self, descrito por Taylor e Trueman, não tolera o desmame. Não suporta a espera. E, justamente por isso, vive preso à ansiedade. O paradoxo é que, ao buscar continuamente por saciedade, torna-se mais vazio. Ao exigir sempre sinais, torna-se cego. Ao rejeitar a frustração, torna-se frágil. O resultado é uma geração emocionalmente exaurida, espiritualmente imatura e existencialmente insegura.

O caminho bíblico, no entanto, é outro. O Salmo 131 é um convite à humildade. É uma oração simples, quase infantil — mas profundamente madura. O salmista não deseja grandezas, não se ocupa de coisas altas demais. Ele aprendeu a calar a alma, a confiar mesmo sem compreender, a descansar mesmo sem sentir. Não porque Deus tenha se ausentado, mas porque aprendeu que a presença de Deus é mais importante do que suas dádivas. Essa é a verdadeira espiritualidade cristã: não aquela que busca Deus para saciar a alma, mas aquela que se satisfaz em Deus, mesmo quando a alma tem fome.

Em tempos de ansiedade crônica, o desafio do cristão não é buscar mais sinais, mais consolo, mais leite. É aprender a viver desmamado — descansando nos braços do Senhor, mesmo quando o leite escasseia. Isso não é apatia, nem frieza. É fé amadurecida, que já não precisa da emoção para crer, nem da confirmação constante para permanecer. É amor que aprendeu a esperar, a sofrer, a confiar — não porque tudo esteja bem, mas porque Deus é bom.

Esse é o convite do evangelho: sair do centro, deixar de medir tudo pelo que se sente, e confiar naquele que nos segura nos braços, mesmo quando já não mamamos. Ser como a criança desmamada: ainda no colo da mãe, mas agora em paz. Não é isso que mais precisamos hoje?

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