Muitos de nós ainda somos levados a fazer a distinção entre o sagrado e o profano. Às vezes, limitamos a ação de Deus apenas às coisas dentro da igreja e achamos que Deus não exerce influência no mundo, porque o mundo “jaz no maligno”.
Mas, quando estudamos as Escrituras vemos que é Deus quem reina neste mundo, não obstante todo o pecado que está nele. Deus reina soberano (Sl 24.1) ainda mesmo quando não reina como Salvador. Se Deus reina e nós somos seus filhos e chamados para seremos regentes com ele, administrando e cuidando das coisas que ele criou, como podemos nos tornar, verdadeiramente, “cristãos do mundo” (Jo 17.15-18) no melhor sentido da frase?
Como podemos estar no mundo, sendo sal e luz, sem sermos do mundo? Qual é o nosso nível de influência e em que áreas devemos influenciar, observando a ordem de Deus de sermos administradores de sua criação?
Vejamos como a Reforma, amparada nas Escrituras, com esse entendimento da soberania de Deus, influenciou as várias áreas da vida fora dos limites da igreja.
I. A Santidade do dia-a-dia: a Arte
Nas pinturas medievais, o assunto era quase sempre religioso. Mesmo quando retratados assuntos seculares (tais como os mitos pagãos), personagens ou imagens bíblicas eram integradas como se de alguma forma o assunto secular exigisse alguma justificativa. Mas os artistas influenciados pela Reforma não faziam arte para pregar ou ensinar. Faziam arte secular sem complexo de culpa, porque sabiam que estavam glorificando a Deus nisso (1Co 10.31). Somos tocados por seus retratos de vida comum nos vilarejos, camponeses trabalhando, descansando ou famílias em volta de suas mesas.
Há, portanto, dois princípios importantes funcionando:
1. Há a aceitação do mundo como, é de verdade, criado por Deus, sob o cuidado de Deus, mas quebrado e corrupto. A arte influenciada pela Reforma é totalmente realista, não espiritualizada.
2. Não é necessário “santificar” a arte, exigindo que ela sirva aos interesses morais e religiosos da igreja. A criação é uma esfera legítima em si mesma e a arte não precisa de justificativas.
O reformador de Zurique, Ulrico Zuínglio (1484-1531), proibiu a arte e a música na igreja, porque insistia na centralidade única da Palavra e dos sacramentos. Contudo ele próprio tocava instrumentos e fundou a orquestra de Zurique. Lutero inspirou toda uma tradição de hinologia evangélica, mas os artistas influenciados pela Reforma não criaram apenas arte religiosa. As peças seculares de Bach e os quadros de Rembrandt, por exemplo, são declarações de que é possível fazer arte secular para a glória de Deus.
O que esses artistas compreenderam foi que, no secular e no sagrado, Deus é Senhor. As áreas são distintas, mas Deus é o mesmo. A tradição reformada mais influenciada por João Calvino produziu também uma rica tradição artística. O Barroco Holandês foi um tributo à sua influência. Até mesmo nas artes dramáticas, houve um impacto notável. A maioria das peças dramáticas antes da Reforma era em forma de peças de moralidade, que frequentemente tinham o mesmo final: o bom era recebido na glória e os que não aprenderam a lição eram lançados no inferno. Mas os reformadores libertaram também esta esfera do domínio da igreja. Na verdade, o pastor associado de Calvino e seu sucessor em Genebra, Teodoro Beza (1519-1605), enquanto produzia os seus escritos teológicos, escreveu a primeira tragédia francesa. Os puritanos na Inglaterra estavam longe de condenar o teatro, como demonstrou uma obra teatral importante por Martin Butler, Theater and Crisis, 1632-1642 (Cambridge University Press, 1984). Muitos deles eram, eles próprios, arquitetos do palco shakesperiano.