Wendell Lessawendell_lessa@yahoo.com.br

O cuidado para com a cultura

Publicado em 28/02/2024 às 22:00.

Nas pinturas medievais, o assunto era quase sempre religioso. Mesmo quando retratados assuntos seculares (tais como os mitos pagãos), personagens ou imagens bíblicas eram integradas como se de alguma forma o assunto secular exigisse alguma justificativa. Mas os artistas influenciados pela Reforma não faziam arte para pregar ou ensinar. Faziam arte secular sem complexo de culpa, porque sabiam que estavam glorificando a Deus nisso (1Co 10.31). 

Há, portanto, dois princípios importantes funcionando:

Há a aceitação do mundo como, é de verdade, criado por Deus, sob o cuidado de Deus, mas quebrado e corrupto. A arte influenciada pela Reforma é totalmente realista, não espiritualizada. 

Não é necessário “santificar” a arte, exigindo que ela sirva aos interesses morais e religiosos da igreja. A criação é uma esfera legítima em si mesma e a arte não precisa de justificativas.

O reformador de Zurique, Ulrico Zuínglio (1484-1531), proibiu a arte e a música na igreja, porque insistia na centralidade única da Palavra e dos sacramentos. Contudo ele próprio tocava instrumentos e fundou a orquestra de Zurique. Lutero inspirou toda uma tradição de hinologia evangélica, mas os artistas influenciados pela Reforma não criaram apenas arte religiosa. As peças seculares de Bach e os quadros de Rembrandt, por exemplo, são declarações de que é possível fazer arte secular para a glória de Deus. João Calvino, também, produziu uma rica tradição artística. 

O Barroco Holandês foi um tributo à sua influência. Até mesmo nas artes dramáticas, houve um impacto notável. Os puritanos na Inglaterra estavam longe de condenar o teatro, como demonstrou uma obra teatral importante por Martin Butler, Theater and Crisis, 1632-1642 (Cambridge University Press, 1984). Muitos deles eram, eles próprios, arquitetos do palco shakesperiano.

A Reforma inspirou liberdade das imposições eclesiásticas também nas artes literárias. Lutero escreveu sobre uma variedade de assuntos seculares e Calvino experimentou até mesmo fazer poesia. Beza escreveu textos políticos que muitos historiadores hoje consideram como tendo grande influência na formação da teoria democrática moderna.

O mesmo espírito prevaleceu na ciência. Não há melhor exemplo da confusão e do domínio da Igreja Católica sobre os empreendimentos científicos do que no caso de Copérnico. Para os reformadores, a Bíblia era sobre Cristo, não sobre o relacionamento dos planetas. Tudo nas Escrituras é verdade, no sentido daquilo para o qual foi escrito pelo autor original. E o propósito das Escrituras é explicar – na linguagem mais comum e básica possível – o progresso da obra salvífica de Deus em Cristo ao longo da história da redenção. Os reformadores deram grande espaço à “revelação natural” e às disciplinas seculares que desfraldavam a sabedoria divina de modo a complementar as Escrituras. 

Na área da educação, por exemplo, Lutero persuadiu o governo a proclamar a educação universal compulsória tanto para meninas como para meninos e criou um sistema de educação pública na Alemanha. João Comenius foi o reformador polonês que procurou integrar sua visão reformada do mundo com a visão da educação pública universal. Ele é visto por muitos como sendo o pai da educação moderna.

Outro exemplo mais recente é o de Abraão Kuyper (1837-1920). Uma das suas contribuições importantes foi sua insistência de que os cristãos na política servissem à nação toda e que não apenas promovessem o bem de seus próprios guetos espirituais. A vida dos crentes será regulamentada e regida pela vontade revelada de Deus, não apenas nos domingos, mas às segundas-feiras também. Todo pensamento tem que ser levado cativo a Cristo, declarou Paulo.

A Bíblia adverte contra confundir as “coisas celestes” com as “coisas terrestres”, mas não adverte contra as “coisas terrestres” em geral. Quando Paulo disse: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo” (Cl 2.8) ele não afirmava que os cristãos devessem considerar toda a sabedoria e filosofia humanas como contrárias à fé. Lembre-se de que Paulo é o homem que argumentou em favor do Cristianismo, a partir da filosofia humana em Atos 17. A sabedoria humana tem valor, mas ainda é humana e não tem supremacia sobre a divina. 

Os crentes devem cuidar da sua cultura com amor a Deus e à sua obra. Deus nos chamou para sermos influenciadores em nossa cultura, exercitando a nossa obediência a ele e demonstrando que todas as coisas são para a glória dele.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por