Vivemos em uma era de descrédito nas instituições, de suspeitas constantes sobre os processos de julgamento e de desconfiança generalizada em relação às lideranças — sejam elas políticas, civis ou religiosas. Esse cenário, embora multifacetado, tem uma raiz antiga e conhecida: a parcialidade no exercício do juízo. Quando decisões são tomadas com base em interesses pessoais, favorecimentos ou vínculos afetivos, e não sobre a base firme da verdade e da justiça, aquilo que deveria ser um serviço ao bem comum torna-se instrumento de manipulação, opressão e desmoralização. Esse é um problema que a Escritura Sagrada já identificava há milênios — e contra o qual ela ergue advertências severas.
A tradição bíblico-reformada, comprometida com a soberania de deus sobre todas as esferas da vida, entende que o exercício do juízo — seja num tribunal civil, num conselho eclesiástico ou numa decisão comunitária — é um ato que deve refletir o caráter do próprio criador: justo, imparcial e verdadeiro. O livro de Provérbios, por exemplo, afirma com clareza que “é abominação para o senhor o uso de dois pesos e duas medidas” (Pv 20.10). Isso não é apenas um princípio administrativo ou um ideal ético; é uma exigência espiritual. A parcialidade no julgamento, para Deus, não é erro técnico — é pecado moral.
Quando líderes agem com favoritismo, seja por amizade, influência ou conveniência, o que está em jogo não é apenas o resultado de uma decisão pontual, mas a integridade de todo um sistema. A confiança da comunidade é corroída, a autoridade é banalizada e o nome de Deus é desonrado. O juízo parcial não atinge apenas as vítimas da injustiça; ele enfraquece a estrutura moral da sociedade e da igreja. A Bíblia adverte que “não é bom ter respeito às pessoas no juízo” (Pv 24.23), porque esse tipo de parcialidade inverte a ordem de valores: promove o interesse em detrimento da verdade, e protege o poderoso enquanto oprime o vulnerável.
No contexto da igreja, essa exigência é ainda mais profunda. A autoridade espiritual não é autônoma. Nenhum presbítero, pastor ou líder eclesiástico tem o direito de agir como juiz segundo seu próprio entendimento ou conveniência. O governo da igreja pertence a cristo, o único cabeça da igreja, e deve ser exercido sob a autoridade de sua Palavra. Qualquer decisão tomada fora desse fundamento — mesmo que embalada em discursos piedosos — é ilegítima e perigosa. A imparcialidade, nesse caso, não é uma questão de estilo ou estratégia; é questão de fidelidade ao Senhor da igreja.
Não é à toa que o apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, lembra que todos compareceremos “perante o tribunal de cristo” (2Co 5.10). O juiz final não será movido por afetos pessoais, nem por narrativas manipuladas. Ele julgará com justiça perfeita, sondando não apenas ações, mas intenções. Essa realidade futura deve moldar a forma como exercemos qualquer juízo no presente. Todo líder, ao tomar decisões que envolvem disciplina, correção, direção ou justiça, deveria fazê-lo com temor e tremor, sabendo que um dia será julgado por suas palavras e atitudes.
Na cultura contemporânea, marcada por personalismos, relativismos e narrativas polarizadas, a imparcialidade é frequentemente ridicularizada como neutralidade ingênua ou como fraqueza. Espera-se que líderes “tomem partido”, que sejam leais à sua “tribo”, que defendam os seus. Mas o padrão bíblico é outro. A justiça de Deus não se curva a interesses de grupo. O juízo fiel é aquele que escuta os fatos, aplica os princípios e decide com equidade — ainda que isso custe popularidade, amizades ou estabilidade institucional. A verdade não é uma moeda de troca. A integridade não é negociável.
Por isso, é urgente recuperar o senso de responsabilidade diante do ato de julgar. Julgar não é uma prerrogativa para poucos, nem apenas para magistrados togados. Todos nós, em alguma medida, exercemos julgamento: no lar, nas redes sociais, nos conselhos das igrejas, nos ambientes profissionais. E todos somos tentados à parcialidade. Por isso, precisamos cultivar um coração humilde, treinado pela Palavra de Deus, disposto a ouvir antes de concluir, a examinar antes de decidir, e a temer mais a injustiça do que a desaprovação de aliados.
A tradição reformada, com sua ênfase na centralidade das Escrituras, no senhorio de cristo e na responsabilidade moral de cada indivíduo diante de Deus, oferece uma base sólida para enfrentarmos esse desafio. Ela nos lembra que toda autoridade é ministerial, não soberana; que toda decisão deve ser submetida à verdade revelada, não aos humores da cultura; e que todo juízo, para ser legítimo, deve refletir o caráter daquele que é justo juiz.