Wendell Lessawendell_lessa@yahoo.com.br

Generosidade e misericórdia – fundamentos para uma sociedade justa

Publicado em 06/08/2025 às 19:00.

Em uma sociedade marcada por desigualdades, crises econômicas recorrentes e um ritmo acelerado que muitas vezes ignora o sofrimento humano, falar de generosidade e misericórdia pode soar como uma proposta ingênua ou até utópica. No entanto, a tradição bíblico-reformada nos lembra que estas não são virtudes opcionais, mas fundamentos indispensáveis para a vida pessoal e comunitária. Mais que atos isolados de bondade, a generosidade e a misericórdia revelam algo profundo sobre quem somos, sobre a ordem moral do mundo e sobre como uma sociedade pode ser genuinamente estruturada.

A Bíblia é clara em afirmar que toda a realidade pertence a deus: “do senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam” (Sl 24.1). Essa declaração simples, mas radical, estabelece a base para entender a generosidade. Se tudo o que possuímos nos foi confiado como dádiva, então somos administradores, não proprietários absolutos. João Calvino, reformador do século XVI, insistia que o cristão deveria ver a si mesmo como despenseiro dos bens divinos, chamados a serem usados para o benefício do próximo. Essa perspectiva confronta a mentalidade consumista contemporânea, que mede valor em termos de acumulação individual e poder de compra.

A misericórdia, por sua vez, não é apenas compaixão emocional ou empatia distante; é ação concreta em favor do necessitado. O profeta Isaías denuncia, em nome de deus, uma religiosidade vazia que cumpre rituais, mas despreza a justiça: “porventura não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo, e que deixes livres os quebrantados, e que despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desterrados; e, vendo o nu, o cubras” (Is 58.6–7). A verdadeira espiritualidade bíblica se expressa em misericórdia ativa, que rompe barreiras sociais e alivia sofrimentos reais.

A tradição reformada herdou essa ênfase profética e a transformou em princípios de organização social. Historicamente, comunidades reformadas foram pioneiras na criação de hospitais, escolas, casas para órfãos e programas de apoio a viúvas e pobres. Isso não foi resultado de mera filantropia, mas de uma convicção teológica: todo ser humano, criado à imagem de deus, tem valor e dignidade. Ignorar o necessitado é, portanto, um insulto à própria imagem do criador. A misericórdia não é paternalismo; é reconhecimento de igualdade ontológica entre todos. Na cultura contemporânea, a palavra “solidariedade” tornou-se popular, frequentemente associada a movimentos sociais e ações humanitárias. Embora haja pontos de contato, a generosidade bíblico-reformada difere de algumas concepções modernas por não se fundamentar apenas em um ideal humanista ou em reciprocidade social. Sua base está na graça: fomos alcançados por uma bondade imerecida e, portanto, chamados a refletir essa mesma bondade. Jesus, em sua parábola do bo
m samaritano (Lc 10.25–37), redefine quem é o “próximo” ao mostrar que misericórdia é atravessar fronteiras culturais, religiosas e econômicas para cuidar do outro, mesmo quando não há benefício pessoal envolvido.

Essa visão confronta dois extremos comuns em nosso tempo. De um lado, o individualismo radical que defende que cada um deve cuidar apenas de si, atribuindo a pobreza exclusivamente à falta de esforço. De outro, sistemas que reduzem a generosidade a mecanismos burocráticos de redistribuição, esvaziando o aspecto pessoal e voluntário do cuidado. O ensino bíblico, ao contrário, chama cada indivíduo, cada família e cada comunidade de fé a participar ativamente da obra de misericórdia, não por imposição externa, mas por transformação interna.

A misericórdia genuína não se limita a suprir necessidades materiais imediatas; ela também busca restaurar a dignidade, oferecer oportunidades e promover justiça. Provérbios 31.8–9 exorta: “abre a boca a favor do mudo, pelo direito de todos os que se acham desamparados. abre a boca, julga retamente e faze justiça aos pobres e aos necessitados.” Isso significa que generosidade e misericórdia também incluem denúncia de sistemas opressores, criação de estruturas sociais mais justas e educação que empodere os vulneráveis. Uma sociedade estruturada sobre tais princípios não apenas distribui recursos, mas constrói pontes de reconciliação e equidade.

No entanto, falar de misericórdia na esfera pública pode causar desconforto. Muitos consideram que fé e ética devem permanecer restritas à esfera privada. Mas a tradição reformada entende que não existe uma dicotomia entre o sagrado e o secular: toda a vida é vivida coram deo, diante da face de deus. Assim, a maneira como tratamos os menos favorecidos, as políticas que apoiamos, os investimentos que fazemos e até os produtos que consumimos são expressões de nossa visão de mundo. A misericórdia cristã não se contenta com gestos isolados; ela busca moldar culturas, leis e instituições para refletir o amor divino.

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