Vivemos dias em que a resistência espiritual é frequentemente confundida com resistência psicológica, e a perseverança cristã é obscurecida por discursos triunfalistas ou terapêuticos que buscam eliminar a dor em vez de enfrentá-la com fé. O Salmo 129, um dos chamados “Cânticos de Romagem”, entoa um cântico de sofrimento e resistência, escrito com o realismo cru de quem passou pela opressão sem perder a esperança na fidelidade de Deus.
A voz do salmista ecoa a memória coletiva de Israel — “desde a minha mocidade” — relembrando a longa história de perseguições e angústias enfrentadas pelo povo de Deus. Não se trata de um lamento individualista, mas de uma recordação e afirmação pública da identidade de um povo marcado pela aliança e pelo sofrimento. A juventude de Israel simboliza o início de sua trajetória histórica, desde o tempo da escravidão no Egito, passando pelas perseguições nos tempos dos juízes, dos reis e do exílio. O sofrimento, portanto, não é acidente de percurso, mas parte da vocação de um povo redimido.
É importante notar que a dor descrita aqui não é genérica. É o sofrimento de um povo por ser povo de Deus. A linguagem poética “lavradores araram as minhas costas; compridos sulcos fizeram” (v.3) traz a imagem vívida da tortura e da humilhação, da tentativa de apagar a identidade espiritual de Israel. Contudo, o verso 4 oferece um contrapeso poderoso: “O Senhor é justo; cortou as cordas dos ímpios.” A opressão, por mais duradoura que seja, nunca é definitiva para o povo da aliança. Deus intervém, corta os laços da opressão e restaura seu povo.
Essa estrutura teológica do salmo nos ensina que, na perspectiva reformada, a história da salvação é marcada por tensões entre opressão e libertação, entre sofrimento e perseverança, entre o agora e o ainda não. O sofrimento do povo de Deus não contradiz a soberania divina, mas é o palco no qual essa soberania se manifesta com fidelidade. Deus não é apenas espectador da aflição do seu povo — Ele é o justo juiz que corta as amarras dos perversos.
Ao aplicar o Salmo 129 ao nosso tempo, é preciso resgatar a memória espiritual da Igreja como povo peregrino. Em uma era que valoriza acima de tudo o conforto, a segurança emocional e a autoafirmação, o Salmo 129 confronta diretamente as narrativas contemporâneas. Ele nos lembra que a fé verdadeira não é medida pela ausência de sofrimento, mas pela capacidade de perseverar em meio a ele. A espiritualidade reformada, enraizada na cruz de Cristo, sabe que a Igreja sempre foi perseguida, seja por forças externas — governos hostis, ideologias anticristãs — seja por forças internas — mundanismo, falsas doutrinas, relativismo.
Hoje, muitos crentes se veem esmagados por pressões culturais que ridicularizam a fé bíblica. Somos chamados de retrógrados, intolerantes ou irrelevantes. A fidelidade às Escrituras é colocada em oposição à aceitação cultural. Pais cristãos enfrentam resistência ao ensinarem seus filhos nos caminhos do Senhor; profissionais piedosos são marginalizados por não se dobrarem às novas normas morais do mercado; igrejas são vistas com desconfiança por insistirem na verdade absoluta de Deus em uma era de relativismo.
A espiritualidade do Salmo 129, no entanto, nos convida a não nos vitimarmos, mas a perseverarmos. “Muitas vezes me angustiaram... todavia não prevaleceram contra mim.” Esta é a confissão da Igreja de Cristo. Ainda que a perseguição venha — e virá — ela jamais prevalecerá. Porque, como o próprio Jesus declarou, “as portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja” (Mateus 16.18).
Na tradição reformada, aprendemos que o povo de Deus é sustentado não por sua própria força, mas pela graça soberana de Deus. Perseveramos não porque somos fortes, mas porque Deus é fiel à sua aliança. A doutrina da perseverança dos santos é, antes de tudo, a doutrina da preservação divina. A Igreja continua viva, apesar das aradas em suas costas, porque Deus é o lavrador fiel que, em vez de destruí-la, a cultiva.
É interessante notar que o salmo termina com uma imprecação contra os inimigos de Sião (vv.5-8). Esses versículos não são expressões de ódio, mas de confiança na justiça de Deus. A maldição aqui não é uma vingança pessoal, mas uma afirmação de que Deus defenderá a honra do seu nome e a integridade do seu povo. A Igreja, portanto, não se vinga; ela espera pelo justo juiz.
Para o leitor contemporâneo, especialmente o cristão que busca permanecer fiel em meio ao caos, o Salmo 129 é uma convocação à resistência espiritual. Somos lembrados de que a verdadeira vitória não é a eliminação do sofrimento, mas a fidelidade a Cristo em meio ao sofrimento. A cruz precede a ressurreição. A história do povo de Deus é marcada por cicatrizes, mas também por libertações.