Sarah SanchesMãe, empresária, escritora, fotógrafa e barista

Carta ao Zé 23

Publicado em 11/05/2023 às 20:00.

Eram os dias mais frescos de outono quando recebi a notícia. Uma manhã comum como qualquer outra. 

Tinha sol, veja só. Eu costumava pensar que dias de sol são bons independente de. 

Eu olhava pra você na sua morenice envelhecida e já notava os tons amarelados que surgiam. Tinha que ter algo de errado.

E logo a dúvida se fez promessa e tudo que viria depois mais parecia com uma longa despedida, misturada a saudade que já se anunciava. 

Te olhar nos olhos, especialmente agora, se tornou uma tarefa difícil por vê-los já sem o brilho manso de um garoto que já tinha visto muita coisa e tem muito a dizer, mas não dizer de qualquer jeito, e sim com aquele jeitinho cearense de transformar qualquer situação em comédia. 

Puxei isso de você, o jeito de falar. Contar.

Junto com a forma como aperto as quinas dos joelhos das pessoas que eu amo e as vejo rir, assim como eu também sorria. 

Pisei em um caco de vidro essa semana e meu primeiro impulso foi te ligar. Não no seu telefone, porque você não tem muita paciência com isso. Desliguei.

Realmente, não era uma boa ideia te tirar de casa para ir até o centro da cidade somente pra tirar um caco de vidro que se instalou no meu calcanhar. Eu não sou mais uma criança e já havia retirado inúmeros cacos, espinhos, farpas e tudo quanto é miudeza pontiaguda que meus pés descalços encontram por aí.

Aparentemente suas ordens de “calçar o chinelo” não foram os suficientes para criar o hábito.

Deixei pra lá. Até cheguei a entregar o pé como quem entrega uma fragilidade a outra pessoa, mas quando se fala em agulhas e alicates é preciso confiança. 

O corpo deve fazer seu trabalho e expulsar. Ou tal qual as ostras, transformar em pérola o meu grão de areia já na sua versão industrializada. 

Após isso, todo pisar é um susto. Ou dou sorte.

E a cada passo, me lembro de você.

Das tantas histórias que temos juntos.

De como é incrível que um caco de vidro possa ser a força motriz criadora de memórias. 

Hoje, quando você estiver deitado pronto para dormir o sono induzido dos enfermos, lembre-se do meu caco de vidro!!!! 

Tá doendo e somente você pode tirá-lo!!!

Te amo.

Com amor, sua neta preferida. 

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