No final dos anos 90, o sociólogo italiano Domenico De Masi criou o conceito de “ócio criativo”. Com a proposta de mudar a ideia de que o ócio seria improdutivo, ele defendia a importância do tempo livre como um espaço para reflexão, aprendizado e desenvolvimento pessoal.
No entanto, os anos 90 foram a última década em que estávamos analógicos. A partir dos anos 2000, com a popularização da internet e o crescente acesso a dispositivos eletrônicos e conectados, parece que ficou inaceitável ficar “sem fazer nada”.
“É consenso entre os intelectuais contemporâneos que a forma como nós nos relacionamos com o tempo está atrofiando nossa capacidade reflexiva, uma vez que a lógica da hiperprodutividade domina as relações e impede que a gente tenha tempo para se dedicar ao ócio, à reflexão”, explica o professor Jonatas Braga.
De acordo com Braga, estamos vivendo praticamente no piloto automático. “Um exemplo de intelectual que faz essa provocação é o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, que afirma em sua obra ‘Sociedade do Cansaço’ que a busca pela produtividade adoeceu a sociedade porque estamos constantemente buscando ocupar nosso tempo e alcançar mais resultados”, explica.
Os momentos de ócio foram substituídos pela rolagem infinita. Criado pelo designer de interface Aza Raskin, em 2006, o recurso carrega automaticamente novos conteúdos na tela, conforme o usuário desliza a página. A intenção era melhorar a experiência de navegação. No entanto, o “infinite scroll” se tornou uma armadilha para manter o usuário engajado, prolongando o tempo de uso e dificultando a percepção de encerramento.
O Brasil é vice-líder mundial em dependência da tecnologia. Segundo o Relatório Digital 2024 do portal We Are Social, a média de tempo on-line dos brasileiros é de mais de nove horas por dia, e estamos atrás apenas da África do Sul.
Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, no final de 2023, mostrou que o uso excessivo de telas está ligado a uma piora na saúde mental dos usuários. E isso, independente da idade. Mais de 70% das crianças avaliadas, por exemplo, tiveram aumento da depressão associada ao hábito.
A pesquisa indicou, ainda, redução no quociente de inteligência devido a falta de incentivo a atividades que necessitam de pensamento rápido e outras atividades que contribuem para o funcionamento ativo do cérebro.
Nem mesmo as crianças têm a oportunidade de usufruir do ócio criativo. Pesquisa recente da Datafolha indica que 78% das crianças de zero a três anos são expostas às telas diariamente. O percentual é ainda maior entre as crianças de quatro a seis anos de idade: 94%.
Em entrevista à BBC News, o neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França e autor do livro “A Fábrica de Cretinos Digitais”, não há desculpa para o que as pessoas estão fazendo com os filhos.
Ele alerta que, ao contrário do que era observado em muitas partes do mundo, os nativos digitais são os primeiros filhos a ter QI inferior ao dos pais. O fenômeno, chamado “Efeito Flynn”, em referência ao psicólogo que o descreveu, foi documentado em países como Noruega, Dinamarca e Holanda.
Desmurget explica que a situações como a diminuição da qualidade e quantidade das interações intrafamiliares e a diminuição do tempo dedicado a outras atividades como lição de casa, música, arte e leitura, bem como a perturbação do sono e a superestimação da atenção são consequência do uso de dispositivos digitais.
A pergunta, há alguns anos, era que mundo estaríamos deixando para as novas gerações. Agora, parece que a reflexão precisa ser: que pessoas estamos deixando para o mundo. Seremos capazes de reverter os efeitos negativos causados pela busca irrefreada pela produtividade e pela falta de ócio criativo? Até quando poderemos ser criativos para encontrar soluções, já que não temos tempo para pensar sobre o assunto?