Você já ouviu falar de Zé Côco do Riachão? Se a resposta for “não”, bem-vindo ao clube — o clube dos brasileiros que vivem cercados de gênios populares, mas que, por algum motivo, não foram apresentados a eles. Gente que nasce com alma de orquestra, mas que morre com o nome fora da partitura da história oficial.
Zé Côco foi um desses. Um artista que nasceu em janeiro de 1912, embalado pela Folia de Reis, às margens do Riachão, que banha os municípios de Brasília de Minas e Mirabela. Não teve conservatório, partitura ou patrocínio. Teve madeira, corda, ouvido e sensibilidade. Multi-instrumentista, luthier — aquele que constrói instrumentos musicais com as próprias mãos —, compositor, mestre da viola caipira. E ainda assim, quase um fantasma nas páginas da nossa cultura.
Ele não era só bom. Era gênio. Tanto que ganhou o apelido de Beethoven do Sertão — título que, para os ouvidos da elite cultural, pode parecer exagero, mas que, para quem conhece a vida e a obra de Zé Côco, soa até tímido.
Agora, mais de um século depois do seu nascimento, um documentário tenta fazer justiça: resgatar, costurar e exibir a história e a arte desse homem que transformou o cerrado em sinfonia. A diretora Andrea Martins está à frente desse projeto, que foi recentemente aprovado pela Lei Rouanet para captação de recursos. Em português claro: o filme agora pode receber apoio financeiro de empresas e pessoas físicas, com o incentivo fiscal que muita gente ainda não entende — e que, quando entende, se pergunta por que não fez isso antes.
Para quem ainda bóia nesse mar de burocracia, um resumo prático: a Lei Rouanet permite que uma parte do que você pagaria em imposto de renda vá direto para financiar projetos culturais, como esse filme. Ou seja: o dinheiro que você já iria entregar para o leão do imposto pode ajudar a contar a história de um dos maiores artistas populares do Brasil. Sem pagar nada a mais por isso. Parece milagre, mas é só política pública funcionando. Quando a gente deixa.
Andrea é firme quando fala: “Não podemos permitir que Zé Côco desapareça na poeira do esquecimento”. E ela tem razão. Já são muitos os nossos talentos que viraram só nome de rua — quando viram. E não é por falta de registro. Zé Côco apareceu na TV, deu entrevistas, encantou plateias. Mas o Brasil tem essa mania perversa de deixar os seus artistas populares empoeirados nos arquivos, como se cultura só valesse quando vem embalada em inglês ou quando toca piano em Paris.
A produção do documentário já tem boa parte dos depoimentos gravados: músicos, familiares, pesquisadores. E terá a narração de Jackson Antunes — outro artista popular, desses que sabem o peso e o perfume da terra vermelha do nosso sertão. O desafio agora é concluir a montagem, garimpar imagens de arquivo das emissoras de televisão e costurar tudo isso em um filme que não seja será só bonito e intenso, como é o nosso Norte de Minas, mas necessário.
Porque contar a história de Zé Côco não é apenas celebrar um artista — é reivindicar um Brasil que existe, mas que raramente aparece nas telas. Um Brasil que constrói violas com facão, que afina o ouvido ouvindo o vento, que transforma madeira em melodia. Um Brasil que precisa se ver, se ouvir e se respeitar.
Esse documentário é, no fim das contas, um ato de resistência. Contra o esquecimento. Contra a lógica do mercado que só financia o que já é famoso. A história de Zé Côco não é só importante para a nossa região, mas é também para todo o Brasil. E, agora, tem a chance de ganhar o mundo, ou pelo menos, as telas.
Apoiar esse projeto não é caridade. É justiça histórica. É virar a câmera para o lado certo da história. É pegar um pouco do nosso imposto e investir em memória — essa coisa frágil que precisa de cuidado, de registro e, sim, de dinheiro.
Se Beethoven tivesse nascido no sertão, talvez fosse Zé Côco. Mas como Zé Côco nasceu no sertão, quase ninguém ouviu falar. Que esse documentário mude isso. Que a gente possa um dia dizer, com orgulho e sem susto: “Claro que conheço Zé Côco do Riachão”. E que o nome dele não precise mais de comparações para ser compreendido.
Porque Zé Côco foi, e é, simplesmente Zé Côco. E isso basta.