Mara Narciso

Os Esquecidos

Publicado em 17/04/2023 às 20:30.

Leio e escrevo desde os sete anos de idade e passei por aprendizados diários e escolas por 27 anos, com duas graduações e residências médicas, por isso é chocante saber que no século XXI o Brasil conta 11 milhões de indivíduos com 15 anos ou mais que são analfabetos (PNAD-2019), enquanto três milhões não têm Certidão de Nascimento (IBGE- 2015), fato que os leva a serem completamente esquecidos.

Na falta de Certidão de Nascimento, a pessoa não existe e, consequentemente é oculta do poder público. Quando a pessoa busca qualquer benefício social, a primeira coisa que lhe é pedida é o “Registro”. O “Batistério” servia para aclarar a data de nascimento de muitos brasileiros batizados, mas não registrados. O problema continua existindo e essas pessoas humilhadas, vão, quando possível, elas próprias tirar seu registro. As datas, costumeiramente, não condizem com a verdade. Algumas vezes até os nomes são trocados. Em geral seus pais são iletrados e cheios de filhos, o que inviabiliza conseguir o documento.

Quem não tem a Certidão não é cidadão. Em razão disso, não pode ser alfabetizado, atendido em Posto de Saúde, receber Bolsa Família, casar-se, ter RG, Título de Eleitor nem Carteira de Trabalho.

O não cidadão é completamente esquecido pelo Estado, não pode ter trabalho formal nem alugar uma moradia. Reside em locais insalubres, perto de lixões, em barracos feitos de lonas e tapumes reaproveitados, sem água encanada, vaso sanitário, luz, roupa, comida. Seu teto não suporta uma chuva habitual. Seus pertences são doações ou objetos recolhidos no lixo. Não estão vacinados e seus filhos seguem a mesma escalada de miséria.

Quando chove, vivem em meio à lama, esgoto e doenças e sua saúde torna-se precária pelo ambiente insalubre. Quando a imprensa se lembra deles, fazem-lhes perguntas que os envergonham e levam esses homens e mulheres ao choro. Reclamam da falta do registro, pois ele os faria cidadãos para tirar os demais documentos, serem alfabetizados e viverem com dignidade.

Para uma criança nascida numa família assim, onde falta o documento dos pais e o seu e não tem comida, apenas um covarde ousaria cobrar-lhe iniciativa anos depois. É honesto falar em meritocracia e empreendedorismo para esses desvalidos?

Uma sociedade que mantém brasileiros nesse estado de penúria, negando-lhes o mínimo, é imoral ser contra o Bolsa Família, o ensino público, medicina gratuita e outras ações sociais, mas extremistas querem surrupiar-lhes os benefícios antes de eles lhes chegarem.

Quem lhes cobra coragem e diz que “essa gente não quer trabalhar”, deveria ser menos cínico e mais humano. Pode-se cobrar algo de quem recebeu casa, alimentação e educação. Para quem nunca teve nada, nem um nome, é preciso dar ajuda consistente e possibilidade de trabalho.

Frágeis pela fome, vulneráveis pela condição social, esses brasileiros só sairão de onde estão com acolhimento governamental. Desvestidos de tudo, não são apenas invisíveis e excluídos, são esquecidos. Lembre-me deles todos os dias e não apenas quando seja conveniente lavar sua consciência.

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