Mara Narciso

Ney Matogrosso e Karla Celene

Publicado em 22/09/2025 às 19:00.

Há poucos dias, discreta, Karla Celene se restabelecia de uma crise respiratória, com sua maneira suave de ser, leve, luminosa, de quem vive e deixa viver sem reclamar. Festejava o passado por ter assistido aos shows de Ney Matogrosso quarentão e sessentão, por isso não lamentava ter desfeito as malas e, ao invés de viajar, ir para o hospital na véspera do show do octogenário. Professora aposentada de Português e Literatura, prosadora e poeta por vezes premiada, publicou livros como: “Antônio – olhos da vida” – Prêmio Clarice Lispector de melhor biografia, “O Lado de dentro das coisas” – indicado para o vestibular Unimontes, “Kalimera” – Prêmio da ZL Books de melhor livro de contos e crônicas, “Cadernos de Ediclar – Memórias do Brejo das Almas”, “Os bares nunca fecham”, “Hibiscos molhados”, “Coragem de ter fé na vida”, “Poemas que o mar deitou na areia” e seu romance “Uma flor dentro da noite”. Este último, não li, mas mergulharei nele com prazer. Karla Celene não segue certas imposições sociais. Nisso ela se aproxima de Ney Matogrosso, sinônimo de liberdade. No próximo show de Ney, Karla deverá estar lá.

Em 1973, quando os Secos & Molhados explodiram no Brasil deixaram a censura do governo ditatorial aturdida, vendo sem compreender o que via: Ney Matogrosso, aos 33 anos, com a cara pintada de branco e preto, cabelo longo em rabo de cavalo e penachos, quase nu dentro de uma calça pantalona começada nas virilhas, sob franjas, cantava com voz feminina e rebolava loucamente. O que era aquilo? As músicas de João Ricardo não eram engajadas no protesto nem na política. Eram dançantes e Ney tinha carta branca do líder do grupo para se desvestir, se ornar de forma livre e fazer no palco o que bem quisesse. Vídeos sem recursos, gravados em apresentações televisivas em cenários tão exíguos quanto suas vestes, mostram seu corpo esguio, com indefectíveis dentes separados e tórax peludo. Em uma época em que não se podia fazer nada, com o país saído há algum tempo da Jovem Guarda dos mocinhos enquadrados, comportados e omissos, podendo ou não, sem pedir licença, Ney Matogrosso fazia tudo, enquanto as multidões descontroladas o queriam mais e mais.

Ney Matogrosso é a materialização da liberdade, um cantor que quebra regras, caso existam. Sem dizer palavras de ordem em favor de uma causa, o que bastaria para o opositor ser perseguido, sequestrado, torturado, morto e desaparecido, também ele era bisbilhotado por informantes. Notava estar sendo seguido. Sua maneira de se comportar, conduzir sua vida, carreira, amores, dinheiro foram motivo de análise. Tem livro e filme sobre sua história, um trajeto tão instigante quanto perturbador. O desregrado Ney Matogrosso atrai e encanta homens e mulheres, mostrando que a vida vale a pena ser vivida, principalmente quando está no palco semicoberto por franjas ou lantejoulas, usando a voz como arma de sedução em sua vida longa, produtiva e atraente. Quantos gostariam de eles mesmos ditar suas regras? Para bem viver a liberdade é preciso coragem e sorte. Karla e Ney as têm.

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