Alexandre FonsecaJornalista, mestre em literatura e doutorando em literatura

Andarilhos da noite

13/01/2023 às 23:39.
Atualizado em 14/01/2023 às 00:45

Se aqui tivesse um mar, eu te levaria para ver as ondas quebrando na praia. Andaríamos lado a lado, deixando nossas pegadas em uma areia escura, peregrinos, absortos em nós mesmos. Veríamos ao longe as ondas mais severas iluminadas pela lua e eu te pediria para fechar os olhos e imaginar as inúmeras e inimagináveis criaturas escondidas debaixo de toda aquela movimentação de água. E você diria não conseguir imaginar toda aquela imensidão de peixes, lulas, raias, águas-vivas. Sentaríamos na areia fofa e comtemplaríamos o horizonte azul-escuro, salpicado por milhões e milhões de estrelas pisca-pisca. A maresia entraria pelas nossas narinas, aquele ar salgado com cheiro de peixe. Imagino que você não gosta, mas acho que errarei. Delicadamente, você pousaria em meus ombros sua jaqueta amarela, mesmo eu odiando amarelo. 

Mas não existe mar no sertão, pelo menos, não nesse. Iria convidá-lo, nesse caso, a andar comigo pela minha cidade: podíamos sentar naquele banco da pracinha e trocar alguns beijos escondidos, perto daquela árvore onde os morcegos sobrevoam. Você tem medo de morcegos? Eu também. Cancelamos. Então, vamos andar. Vamos começar pelo cemitério onde o vento sempre é fresco, mesmo com os fantasmas pairando no ar. Você me olha e diz que somente os bons espíritos nos acompanham. Sorrio e acredito, e ouço alguém sussurrando em meu ouvido bons presságios. Arrepio, mas você me abraça. 

Andaríamos. Passaríamos novamente da praça, depois da igreja, viraríamos uma esquina para conhecer minha avó. A casa dela tem alpendre e uma arvorezinha com flores cor-de-rosa que exalam perfume quando faz calor, principalmente, naquelas noites com lua cheia e límpida. Sentaríamos no alpendre e você me contaria que já foi duas vezes naquele país lindo, cheio de coisas bonitas e de muita poesia, mas aquele alpendre era melhor. Por sorte, naquela noite, minha avó fez arroz-doce e deixou gelá-lo. Comemos e partimos depois de darmos “benção” e ouvirmos “deus lhes abençoe”.  Descemos por uma rua cheia de buracos e com pedrinhas pontiagudas. Uma brisa fresca lambe nossos rostos e dobra por uma esquina, balançando as folhas das árvores e assustando os pássaros noturnos.  Já é tarde e parece que a aldeia cochila ao som do silêncio. Mas, nós não dormiríamos. Somos peregrinos da noite e o silêncio do mundo não nos amedronta. “Do silêncio”, você diz, “nasce o vocabulário”. Acho uma coisa linda a se dizer em plena noite de quinta-feira. Nasce o vocabulário, repito mentalmente.

Novamente, estaríamos a andar.  As casas são de telhão e tem calhas de zinco. São simples, não possuem reboco. Do lado de dentro, ouviríamos pessoas fazendo amor e aquilo nos excitaria. Outras mastigam frutas doces e suculentas. Mas, aquela noite seria para andarmos, ainda teríamos tempo para outras coisas. À medida que andamos, posso imaginar, sentimos mais o sereno do anoitecer pelo ar puro. Molha nossos rostos. Parece que uma cachoeira invisível e delicada cai sobre nossos olhos – delicadamente. Passamos por entre capins molhados, o que me causa uma aflição e gastura. Nesse momento, estaríamos de frente a um pequeno filete de água gelada. É água da madrugada, é sagrada. 

Subiríamos um morro escuro e misterioso e, de lá de cima, veríamos todas as casas dormindo, silenciosas, guardando todos os segredos, as conversas e os gemidos noturnos. Ah, os gemidos! Animais ferozes aproveitando a fresca para fazerem um amor lento e vagaroso, examinado cada pedaço do corpo alheio. A cena é bonita e quero gravá-la na memória. Subimos mais por entre árvores escuras e animais misteriosos. Ao chegarmos a um ponto razoável da subida, um cachorro surgiria e lamberia minhas mãos e latiria de felicidade ao me ver, mesmo sabendo que não somos seus donos. Sentaríamos no chão de cascalho seco e olharíamos contemplativos o mundo dormir um bom sono, repleto de sonhos bons.  E, naquele instante, eu imaginaria um mar silencioso, quieto e estático refletindo as luzes de centenas e centenas de estrelas distantes e frias. 

E você me diria: pois és tu, meu bem.  

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