Chico Anysio: aula de vida

Jornal O Norte
Publicado em 19/11/2008 às 10:28.Atualizado em 15/11/2021 às 07:50.

Marcelo Braga


Escritor


mqbraga@hotmail.com



Apesar de não saber contar piadas, costumo colher gargalhadas em variadas oportunidades. Herança que me coube de Dona Lourdes, avó paterna que recentemente perdi (minha homenagem foi publicada em 26 de setembro, sob o título Movendo Montanhas, sem que o jornal contasse quem era o autor), e de meu pai, uma das pessoas mais engraçadas que já conheci.



Sim, manter o semblante sério consome muito mais energia do que ostentar um sorriso escancarado. Dizem que contraímos diversos músculos faciais, para oferecer ao mundo os esgares mais respeitáveis. Ou as carrancas mais expressivas, se melhor convier.



Arrumei-me para a aula noturna de sábado com um vagar premeditado. O Anjo Pornográfico certamente sacaria uma de suas locuções prediletas, para qualificar todo aquele ritual. Estaria eu em meio a um banho de Cleópatra, já me achando um protagonista de A vida como ela é… Havia uma boa causa! Não é todo dia que se pode assistir a uma aula de humor. Principalmente se ministrada pelo maior humorista que este país já teve.



Chico Anísio singrou o animado mar de gente com passos calmos, já mostrando ao público que definitivamente há vantagens no amadurecimento. Não me pareceu ver sequer um pingo de ansiedade naquela figura que aprendemos a ler pela televisão. Nem no andar, nem no falar, nem no olhar. E veio-me à memória o comercial que ele estrelara num tempo longínquo, em que clamava pelo direito de envelhecermos ao contrário: nascermos sábios velhinhos, que se tornariam vigorosos adultos, que evoluiriam para apressados adolescentes, que desabrochariam em espevitadas crianças, que amainariam em risonhos bebês, que, sonolentos e serenos, adormeceriam no aconchegante útero materno. E morte não haveria, mas um nascimento às avessas.



Dono absoluto de seu momento, Chico foi lecionando. E o que me saltou aos olhos não foi a graça que todos procurávamos (ela entrou com ele e instalou-se logo de início, como se obrigatoriedade fosse). Mas sutis ensinamentos outros que pudemos ir colhendo noite afora. Sem esforço algum.



Chico subiu ao palco acompanhado de piadas, que preferiu chamar histórias; da trilha sonora de uma vida; de um sentimentalismo aflorado; de lotes inteiros de saudade; e da genialidade de que, talvez, já não consiga mais se despir. Tudo coberto pela mais gritante simplicidade – aprendais a ver quanta beleza há no simples: eis a felicidade!, pareceu sussurrar-nos cifradamente.



Para cada história que começava, havia uma âncora de sentimento. Um caminhão de saudade. E desfilaram ante nossos olhos grandes amigos de que o tempo achou por bem privar o mestre: Jorge Amado, Zélia Gatai, Vinicius de Moraes… Confesso não me lembrar do nome de outras amizades que Chico citou. Mas, por muito tempo, seguirei lembrando a voz embargada com que nos contou sobre a última vez em que disse à sua mãe que a amava.



Nenhum de seus personagens apareceu.



Éramos apenas nós, Chico e as canções.



Bastamo-nos!



Nunca acreditei que haja pessoas ou coisas insubstituíveis. A própria vida impõe interpretação diversa, mostrando-nos de quando em quando a cara da morte. O universo é reciclável, e João nasce para ocupar o lugar de José, que logo deixará de existir.



Mas a feiúra que há reside na ingratidão, e a aposentadoria compulsória é uma figura jurídica que não combina com a arte… Para uma pessoa que alcançou o direito de povoar mentes de todo um país, não se deveria pagar com abandono; por outra, com merecida ascensão: de sujeito a instituição.



Foi o que coube a nós, calorosa platéia, mostrar ao Chico. Pois professor também gosta de aprender.



Terminado o espetáculo, rumei à peixaria.



No banco do carona, vislumbrei os contornos inquietos da ansiedade.



Caberia alguma penitência por ter deixado de ser um aluno aplicado.



Acompanhado de uma timidez que já julgava extinta, cumprimentei o mestre pelo show, balbuciei mais algumas palavras e entreguei a ele meu livro Grão, com uma satisfação enorme misturada ao atabalhoamento.



Assentado a seu lado para a foto, vi uma fome resignada, boiando naqueles olhinhos cansados. Foi aí que me veio a idéia dessa crônica, para lhe dizer tudo o que calei naquela noite.



Agora, quando for minha vez de cantar histórias para meus amigos, vou poder dizer que Chico Anísio tem um autógrafo meu. E que precisarei reencontrá-lo, pois o dele não peguei…

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