Cenas de banho

Jornal O Norte
Publicado em 17/03/2009 às 10:04.Atualizado em 15/11/2021 às 06:53.

Mara Narciso



A primeira imagem que nos vem à mente quando pensamos num banho, é a de uma mulher jovem, de pele tenra, cor de saúde, corpo magro e pés deslizantes num chão maravilhoso, totalmente branco. A toalha também imaculada cai desse corpo, mansamente, até atingir o assoalho. A próxima cena é de uma ducha espetacular, onde muita água jorra sobre a personagem, com destaque para o seu rosto, que mostra um prazer só existente em comerciais muito bem produzidos. Nesse cenário de cinema é possível vender, e vende-se mesmo tudo,desde os lustres, até os revestimentos do chão, passando por outros itens de decoração, de chuveiros, toalhas, cremes e xampus. Ou talvez uma estadia num hotel. Nesse caso é preciso recorrer também ao romantismo incrustado no inconsciente de boa parte da população adulta.



A mulher está dentro de uma banheira repleta de espuma. As margens são de madeira, e sente-se até o perfume do local. Há duas taças com champanhe descansando ao alcance da mão. O outro personagem que falta não tarda a aparecer. É um homem igualmente jovem e belo, que entra suavemente no recinto e depois na banheira, pega as taças e entrega uma delas à mulher. Então, entrelaçando o braço com o dela, fazem um brinde ao consumo requintado, ao luxo, ao prazer puro e nem sempre simples. Então a inveja é o motor que nos impele, senão a consumir, pelo menos a idealizar que essa sim é uma vida boa, e o que temos é um mero arremedo de viver. A publicidade, nas suas diversas linguagens, sabe nos persuadir de forma cativante, fazendo entrar em colapso os nossos inseguros desejos, e assim, ao nos seduzir, domina todos os nossos pensamentos, fazendo de nós brinquedos das suas vontades e não mais das nossas.



Mas um banho poderá ter um outro viés. A pessoa a ser lavada poderá ser idosa, estar doente, estar inundada por todas as secreções humanas e desumanas, ser tetraplégico e fazer as suas necessidades na cama. As mãos serão incapazes de fazer a mínima higiene dos olhos e da boca, e a fralda noturna poderá não conter todos os detritos. Quem passou a noite com ele terá deixado para trás alguns indispensáveis cuidados. Assim, o odor e a imagem matinal serão muito duros de enfrentar.



O calor maltrata aquele corpo que já deteriora na cama há quatro anos e meio sobre o colchão caixa de ovo, que mesmo sendo renovado, machuca o homem frágil, magro e sofrido, nos seus 77 anos. O óleo da sua pele facial rebrilha de manhã. Não há vitalidade alguma na tez, que se fere a qualquer toque, mesmo delicado. Então, a hora do banho é o único momento de prazer para essa pessoa que não anda, não fala, não ri, e não pode comer. Os vários acidentes vasculares cerebrais e as subsequentes cirurgias no cérebro o destruíram, e embora não tenha vida, está vivo.



Mas o técnico em enfermagem, num cochilo de quem supervisiona tudo, finge que deu o banho. Faz uma encenação, molhando a cabeça, trocando a roupa, refazendo os curativos. Mas o tempo, que geralmente é de quase uma hora, reduziu-se aos quinze minutos da ida a padaria. Uma olhada rápida engana, mas de perto a cadeira de banho está seca, a toalha minimamente usada, e a esponja também seca, são demonstrações claras de que o banho não foi dado. A irritação sobe a cabeça, mas é preciso muita calma. O profissional já faz esse serviço todos os domingos há quase um ano. Em tese já sabe tudo o que tem de fazer e não deveria ser preciso nenhuma chamada. Diante desse fato novo, é questionado. No começo nega, mas, diante do indesculpável, leva o idoso para o banho.



Meio caído de lado na cadeira, que é de rodas, com um assento de tampa de vaso sanitário, o velho nu é molhado com a mangueirinha do chuveiro. Não mais consegue demonstrar satisfação, como antes, com o contato da água. Mas ele gosta. Seu corpo é ensaboado com uma esponja macia, com espuma de sabonete líquido suavemente perfumado. Na cabeça, a espuma do xampu dá-lhe um aspecto bizarro. Toda a espuma é retirada, a boca sem dentes é lavada com um anti-séptico bucal e ele tem a pele enxugada e depois coberta com creme. De volta ao quarto, os curativos são feitos (da sonda do estômago, por onde é alimentado, e do braço, que foi ferido na cadeira há alguns dias e está custando a sarar, mesmo com todos os aparatos) e a roupa é colocada. É hora de injetar com seringa a dieta no estômago e também o rol de remédios.  Com os cabelos brancos, sedosos e lisos, penteados para trás, imitando os tempos de saúde, o velho está, finalmente, pronto para um outro dia de sono. O torpor que o acomete há tantos anos, mal o deixa abrir os olhos. Quando muito estimulado, esboça um esgar facial, entreabre um dos olhos por instantes, depois espreme as pálpebras com força, voltando ao seu dormir profundo, cansado que está de aguardar pelo sono eterno.

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