Ronaldo Duran (*)
À mesa, as caras se movimentam. São onze pessoas. Tia, primos, marido, mulher, filhos, sogra, sogro. A mesa farta, tudo a ver para comemorar um feriado nacional, a Páscoa. As bocas gulosas mastigam o bom alimento que chega por fartas garfadas. Uma reunião atípica para a família: todos reunidos.
O anfitrião resistiu horas a fio sem bebericar. Servia uma cervejinha para os convidados que iam chegando. Ele mesmo, esquivando-se. Aliás, o jejum alcoólico perdurara três meses. Se à mesa da Páscoa tomou um vinhozinho não foi por quebra de promessa. Natal, véspera de ano novo e Páscoa eram religiosamente aceitos para bebericar um trago.
Infelizmente, este biólogo não guarda boas relações com o álcool. Pior, na maioria das vezes que se deixou envolver pelos braços macios da loira gelada, acabou dando vexame, destaque para os tempos de juventude. Na vida adulta, é o Baco que lhe funde os miolos e o faz vomitar palavras, risos, frases, desabafos que o farão se arrepender durante uma fileira de dias. Claro, se ninguém o repreender no dia seguinte pelo vexame, pouca importância terá o evento em sua memória.
Nos tempos que corre, ele está mais maduro, ou menos propenso a dar vexames, tem como meta esquivar-se do álcool. Tem tido êxito digno de um atleta numa competição olímpica.
- Que alegria não ter que se arrepender amanhã do que se disse hoje - dizia para si sempre que declinava do convite para aceitar uma cerveja.
De volta à mesa, tome mais batata, mais arroz, mais bacalhau, mais cebola, oh, deliciosas cebolas. O biólogo, com a garrafa ao lado, bebia o belo vinho a cada duas ou três garfada de comida.
- Quem está tomado vinho - disse a mulher.
- Eu - respondeu o marido, já com o mau-humor azulando a face por esta pergunta tão fora de propósito para ele.
Os comentários da esposa que se seguiram, algo inocente e perfeitamente compreensível à luz de um relacionamento solto, sadio, para o marido soou como uma tremenda repreensão, desta que nos faz querer lançar o prato aos ares.
Pronto, a refeição para ele tinha acabado. Não adiantava discutir, pois o casal estava desgastado, e qualquer incidente tinha a mera qualidade de trazer à tona o incômodo que habitava no interior de cada cônjuge.
Recorda-se ele de ter dito uma frase desagradável. A esposa revidou. O desassossego se instalou.
- Droga, podia ficar com a boca fechada - o biólogo disse para si.
Mais uma vez rosnou contra o maldito álcool.
- Sem o maldito álcool eu consigo engolir desaforos, ser indiferente...
(*) Escritor
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