Rapahel Reys
1951, o inesperado estava para acontecer! Havia completado quatro anos de idade e, por necessidade de tratamento médico especializado, fui levado por minha mãe para Belo Horizonte, onde permanecemos por seis meses. Tempo do meu tratamento e recuperação.
Recebida a alta médica e para registrar a data alvissareira, minha mãe levou-me ao Parque Municipal, na época um luxo, um primor. Forrada a grama com uma toalha confeccionada pela minha bisavó paterna, especialmente para o registro do instantâneo. Trabalho feito com aplicações de renda trabalhadas à mão, como acabamento final, conferia nobreza à cena documentada.
Vestido com roupa de marinheiro estilizado, moda dos anos 40 ainda em voga, o cabelo cheio e penteado com gumex para fixar o redemoinho, registradas as seis fotos numa Kodak metálica com lente plana, o chique do romantismo. O serviço de revelações foi entregue a conhecido estúdio próximo.
De volta às origens recebemos a encomenda pelos correios. As fotos, afixadas em um álbum com capa de madeira trabalhada e decorada com motivos florais, manuseei-as várias vezes, buscando avivar o registro na memória.
Poucos dias após chamaram à nossa porta. Surgiu um Oldsmobile com quatro cavalheiros bem vestidos, terno chapéu Panamá, sapatos de verniz e de duas cores. Após identificar minha mãe, destinatária das fotos, já recebidas, perguntaram pelo chefe da casa.
Em posse da informação, partiram. Logo retornaram com o meu pai, que havia fechado o comércio para atendê-los. A cena ficou indelevelmente gravada na minha alma. Eles receberam o álbum, retiraram cinco instantâneos, deixando só o momento em que eu aparecia deitado e como elemento único fotografado.
Aqueles senhores eram componentes de uma quadrilha especializada em roubo a bancos e apareciam nas cinco fotos, pois estavam no logradouro no dia do crime, onde montavam campana, e foram advertidos por um olheiro.
Vieram em busca das fotos, elemento táctil e base passível de um Blow Up incriminador. Descobriram o nosso endereço após rastrearem os estúdios fotográficos próximos ao jardim denunciador.
Pela consideração e, mesmo pela elegância que tiveram conosco, nos poupando de vexames e violência, o meu pai agradeceu. Minha mãe empalideceu e desmaiou quando as fotos foram rasgadas. Eles voltaram a suas vidas de crime, e nós permanecemos na nossa bucólica e campesina terra de Figueira.
Naquela época, numa cidade interiorana como Montes Claros, aquilo era uma cena inconcebível, mesmo se contada como simples história. Eram as mãos do destino karma e a providência divina equilibrando a ação retificadora.
Fomos à catedral para orar pelas almas dos velhacos grã finos, verdadeiros patifes de casaca.
Aqueles senhores deixaram como presente para mim um menino que nada estava entendendo daquilo, um tambor e uma flauta de madeira e boqueira de lata como a do mago de Merlin, aquele que conduzia os ratos para fora das cidades, atraídos pelo som de sua flauta.
Um enredo para sucesso garantido de uma película cinematográfica: seis inocentes fotos, um possível blow up, um jardim romântico nos anos 50, uma campana de meliantes dândis, uma mãe feliz, um pequeno rapazinho vestido de marinheiro, uma Belô de art noveau, de linhas curvas, de bondes, de tempos bucólicos, de copos de papel em cone dentro de taças de metal, de jardineiras com buzina fonfon, de utópicos cavalheiros penteados com brilhantina, e de ruas; como disse Affonso Romano: que cheiravam a jasmim e damas da noite.
Tempos de garotas usando boina de feltro e saias tipo garota do Alceu, de jóias coco e ouro, da tabela Price, dos preços fixos, de Chico Viola e de uma melodia no ar. Como ‘tema’ e fundo musical. “ Carlos Gardel.... Buenos Aires chorava o teu canto... Buenos Aires cantava o teu canto...E ouvindo suplicavam tua voz..!”