Bigode de arame

Jornal O Norte
Publicado em 23/07/2010 às 10:49.Atualizado em 15/11/2021 às 06:33.

Alberto Sena


Jornalista



Nunca soubemos o nome dele. Se alguém soube nunca nos disse. Mesmo porque criança não se dá ao trabalho de imiscuir na vida dos outros, nem para saber nomes. Além do que, ele nos metia medo.



A origem dele era difusa. Diziam: ‘foi cangaceiro do bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião’.



Depois daquela refrega sofrida pelo bando, surpreendido pelos ‘milicos’ da época, na Fazenda Angicos, no município sergipano de Poço Redondo, ele teria escapado ileso, e como um foragido da justiça, pulara de cidade em cidade até fixar residência em Montes Claros, como gente pacata, homem casado, sem filhos.



Nós o chamávamos ‘Bigode de Arame’.



O bigode dele era enorme, semelhante ao do genial pintor espanhol, Salvador Dalí, que nem de leve passava por nossa cabeça na ocasião. A comparação vale agora quando recolhemos cacarecos de lembranças nesse exercício de memória.



‘Bigode de Arame’ não é fruto da imaginação. Existiu de verdade. Tinha até endereço: Rua Januária, esquina de Rua Camilo Prates, próximo da antiga Padaria Real, na Rua Bocaiúva, em Montes Claros, importante cidade do sertão norte-mineiro.



Com frequência passávamos na porta da casa dele indo para o centro da cidade, no sentido Praça Coronel Ribeiro (salvemos a praça, se ainda há tempo!), ou quando voltávamos.



Ao nos aproximarmos da casa dele diminuíamos os passos e parávamos na porta para espiarmos lá dentro em busca de algum indício relevante sobre a origem dele.



Claro, um homem como ‘Bigode de Arame’, com toda a fama alimentada sobre ele, no mínimo exercitava o nosso imaginário. Ficávamos pensando nele com chapéu de couro dos cangaceiros, mais os cinturões de balas de carabina cruzados na frente do peito. O rosto suado, de quem só toma banho de vez em quando, enquanto nós crianças tínhamos de tomar banho todos os dias, senão o couro cantava lá em casa.



Ficávamos imaginando a quantidade de soldados mortos por ‘Bigode de Arame’. E nos perguntávamos: ‘quem sabe no cabo da carabina dele tem marcas da quantidade de soldados por ele abatidos, como marcamos o gancho dos nossos estilingues’?



Quase toda vez, ao passarmos na porta da casa dele, lá estava o homem sentado na cadeira de balanço. Movimentava a cadeira devagar, como se fosse proibido balançar com mais força, como fazíamos nos balanços da Praça de Esportes. Enquanto isso, ele cofiava o bigode de modo a torná-lo fino nas pontas.



Pouco se poderá dizer agora sobre o bigode dele, além da dita semelhança com o de Salvador Dalí. Nem mesmo a cor se podia saber direito. Ele era fumante inveterado e a cor amarela do bigode podia ser mera consequência da nicotina, que lhe manchara também os dedos da mão direita.



Quando ele não era visto fumando, picava fumo de rolo com canivete e o enrolava na palha sempre presa entre os lábios. ‘Bigode de Arame’ usava o próprio canivete para acochar o cigarro e em seguida acendia-o com uma binga, espécie de isqueiro rudimentar composto de uma pedra de faísca e pavio umedecido em querosene.



Ele era velhinho. Pelo menos para as crianças, parecia. Assim como velhinha era também a mulher dele. Os cabelos dela esbranquiçados pareciam estar grudados, como ficam os cabelos sujos de quem não os lava com frequência.



Para nós, ela era ‘Maria Bonita’ velhinha. Entretanto, quem nos intrigava era o marido dela, se é que de fato pertencera ao bando de Lampião.



Na sala da casinha simples onde o casal morava – construção antiga, do tipo colonial, de adobe; rebocada e pintada de amarelo; as portas e as janelas verdes – havia um baú aos nossos olhos, enorme.



Nós ficávamos ali na porta vendo o baú. Torcíamos para ele o abrir a fim de nos revelar o que de fato havia lá dentro.



Mas ele não o abria. Pelo menos diante de nós, nunca. Isto, claro, aumentava ainda mais as especulações. Chegamos até a apostar míseros cruzeiros. Havia quem assegurasse que dentro do baú tinha carabinas, balas e chapéus de cangaceiro. Além de roupas de couro cru usadas para enfrentar os espinhos da caatinga nordestina.



Houve até quem apostasse: ‘é baú de ossos; lá dentro há esqueletos de ‘milicos’ abatidos por ‘Bigode de Arame’ e pelo próprio Lampião’. Mas ninguém nunca conseguira tirar isto a limpo.



Tanto tempo depois, se alguém souber informações sobre ‘Bigode de Arame’, seja daqui do Brasil ou do exterior, com base nas características dele descritas, faça o favor de entrar em contato conosco.



Juntos, talvez possamos, enfim, desvendar o mistério da origem do homem que, meio século antes, povoou nossa infância e tanto medo nos meteu. Antecipamos pungentes agradecimentos.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por