Avistador de mudezas - por Eduardo Lima

Jornal O Norte
Publicado em 15/12/2006 às 11:39.Atualizado em 15/11/2021 às 08:46.

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Fiquei olhando uma árvore. Sai um pouco do meu cantinho de escrever e fui avistar a rua. Lá estavam os moços compenetrados, lutando contra galhos e folhas fartos. Esticam cordas, puxam daqui, puxam dali e depois serram, numa algazarra lembrando aço e cheirando gasolina. Em seguida cai o galho, tomba moribundo sobre a calçada, passa rente aos fios e o alívio se instala naquele pedaço de avenida.





Uma árvore de cidade não pode viver de si, pensei. Uma árvore de cidade grande não pode ser tão grande quanto quer. Árvore de cidade grande é, de tempos em tempos, amputada, roubam-lhe braços e rumos. As árvores das cidades devem se conter em espaços medidos, os que lhe impõem o homem e a arquitetura do homem...



Depois voltei à máquina. À minha máquina luminosa de guardar meu pensamento. E ao conectar-me registro um e-mail, de caráter profissional, de um jornal que abre um espaço novo para eu mostrar meus escreveres. E ali me pedem um chamado pé biográfico, algo que me possa identificar, aludir à minha tarefa de escrever. Neste caso, pensei, não posso escrever locutor. Locutor fala. Não posso, tampouco, escrever escritor. Não o sou. Minha tarefa por aí é pequenina. Vou pensar.



Apresentar-se é sempre constrangedor. Não podemos incorrer no risco de parecer imodestos. Assistindo a uma entrevista de um político padrão, destes polidos, limpinho, unha feita, terno impecável, bem cortado, Hermenegildo Zegna, enfático, mas desvalido de comedimento, tremi de medo. O homem se crê a própria perfeição, um Deus de delícias de valores. Deslavado é que é. Assim me recuso a dizer alguma coisa sobre mim. Especialmente sobre o que sou se tão pouco há a dizer.



Sou pai, fundamentalmente, se se contam filhos como currículo. No mais assinalaria; Eduardo Lima, cozinheiro de meia pataca. Cozinheiro de pequenos paladares. Refogador de chuchu. Talvez devesse escrever que sou estendedor de carne de sol em varais vespertinos. Quem sabe ficasse melhor me dizer roedor de pequi – o que não é muito verdade, pois esta tarefa na terra de montes claros revela efemérides, gente capaz de, numa sentada roer cem -. Coisa difícil me pedem; esse tal pé biográfico.



Digam que sou insone. Eduardo Lima, o mal dormido. Digam que sou ligeiro de noite e, se vale passado, contem que semeei madrugadas, vali-me de luas, fiz serenatas. Talvez ficasse bem dizer; seresteiro mediano sob as janelas do Colégio das freiras. Tenho, pois árdua tarefa; resumir-me. Tornar-me adjetivo, algo que possa parecer comigo e que alguém, em lendo, creia.



Talvez eu possa escrever que sou foveiro e tenho alguma educação. Ex-aluno marista, fiz dinâmica de grupo. Freqüentei grupos de jovens. Declamei no Grêmio Geral. Escrevi mais de cinqüenta prefácios e, no final de uma manhã de terça-feira, em 71, me levaram de casa para uma cela e falaram em subversão.



Dizer o que somos é muito difícil. Mas se assim o querem, por dever profissional devo fazê-lo. E talvez possa dizer que sou poeta. E posso explicar, assistindo à poda de uma árvore que engolia fios elétricos, fiquei imaginando a dor que as árvores sentem quando lhes decepam, reduzem os caminhos que a sua natureza pura traça. Talvez seja poeta alguém que é capaz de supor o sofrimento vegetal de uma esquecida árvore de rua. Ponham, então, poeta. Não por escrever poesia, pois não sou escritor, mas por ser assim à toa, um vão avistador de miudezas.



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