Mara Narciso
A menina valente defendia com tapas e unhas a si mesma e aos irmãos menores. Mas as outras crianças a ameaçavam: “você bate em mim e eu desconto na Dodoca”, o apelido do seu irmão pequeno. O pai, a autoridade máxima, quando vinha chegando do trabalho, instaurava susto e medo generalizados, e obrigava a mãe a mandar os filhos calarem a boca e desaparecerem pelas sombras, nos fundos do quintal. Algumas vezes a menina valente escondia-se debaixo da cama. Uma vez, bem pequena, levou uma surra e foi jogada pelo pai sobre um estrado sem colchão, porque falou a um menino que alguém tinha feito xixi atrás de um monte de tijolos. Outra vez, passava pela copa, enquanto o pai almoçava, e quase levou uma panelada de abóbora na cabeça, pois a panela cheia de comida foi jogada furiosamente pelo pai contra a parede, formando um enorme sol alaranjado.
Com seis anos já subia num tamborete para lavar as panelas e pratos na pia. Uma menina, mesmo valente, tinha de aprender a cozinhar e a cuidar de crianças e da casa. Excelente aluna nota dez em matemática, lia muito e tudo que surgia. A mãe dizia que nem mesmo uma bomba a afastaria dos livros. Adorava a vida na roça, e nas férias ia de carro-de-boi para a fazendinha do tio, que ficava a seis quilômetros da cidade. Lá, era fartar-se de mangas, até ficar toda amarela. Coçava a noite toda cm picadas de insetos.
A moça valente tinha a pele morena clara, os olhos azuis cinzentos e os cabelos pretos e lisos caídos em duas tranças. Era linda, mas nem desconfiava disso. Estudiosa, não tinha aptidão para línguas, e achava latim dificílimo. Tímida, tentava esconder-se deitando-se na cadeira quando algum irmão falava em público, declamava poemas, ou cantava. Deu aulas particulares de matemática para a vizinhança, mas isso durou pouco tempo. O dom era estudar e a facilidade era aprender.
Queria ser médica e foi da primeira turma do então chamado científico. Mas ao término do ensino médio, o pai, que insistiu tanto aos outros dois filhos, que fossem estudar medicina em Belo Horizonte, na permitiu que a filha assim o fizesse. Às moças era reservado o dever de se casarem e serem mães, de serem recatadas e reclusas, e irem à igreja e obedecerem aos seus maridos. Conheceu o homem que se tornou seu noivo, e este foi apresentado ao pai dela por um tio. Como jogador de futebol, não era bem visto pela família. Mas foi aceito, já que tinha se formado contador, em ensino técnico. Consentido o casamento, sem paixão, a moça valente cumpriu o ritual e foi uma noiva virginal e bela.
Nove meses depois o primogênito apareceu. O médico dissera para parar de amamentar, já que estava muito magra e ela engravidou em seguida. Os enjôos eram fortíssimos, e ficava jogada na cama, levantando-se apenas para lavar, cozinhar, arrumar e esperar o marido, um homem calado, sisudo, autoritário, que demarcava a altura da saia, a ausência de decote, o comprimento dos cabelos, e até a cor do esmalte. Um ano após o menino, veio uma menina. Uma vez, obediente, descoloriu os cabelos negros para atender aos queixumes do marido que era obcecado por uma atriz de cabelos loiros. Não combinou, então voltou atrás. Ficou morena de novo.
A vida pobre os levava de bicicleta, a mulher no cano e os dois filhos na garupa, à mesma fazendinha dos tempos de menina. Anos depois, venderam a casa conquistada a duras penas, com o serviço de contabilidade numa concessionária de automóveis da cidade, e montaram uma loja de confecções. Obediente, a mulher valente serviu no balcão alguns anos, mas não tinha remuneração por menor que fosse. O temperamento fechado e desinteressado do marido não tardou a levar a loja à falência.
Já com a terceira filha, dois anos após o parto cesariana de um filho que morreu no seu ventre, depois de um trabalho de parto penoso e frustrante, saía frequentemente à tarde com a sua ninhada para a casa da mãe, passando na porta da casa de uma tia e ao entardecer estava de volta à casa. Não era fanática por arrumação, mas cozinhava bem, costurava e bordava. E é claro que lia muito também. Houve época em que a profusão de revistas era total, e os livros emprestados davam um colorido a sua vida insossa. A conversa à mesa era inexistente, mas as críticas e a opressão silenciosa eram a tônica da sua vida sem glamour. As idas obrigatórias aos clubes eram permeadas de conversas fúteis com as mulheres. Quando podia, fugia com um livro. O calor fervia a pele, mas era proibido usar roupa de banho. A mulher valente obedecia.
O pensamento político era libertário, mas engolido e comentado apenas com os filhos entre dentes. Aceitava o silencio, a bebida exagerada dele, os gastos fora de casa, e as faltas financeiras, mas crescia em busca de um caminho. Então surgiu a faculdade de medicina na cidade. Foi fazer cursinho com 33 anos e no primeiro vestibular foi aprovada.
Durante o curso, pago pela prefeitura, sofreu muita humilhação do marido, que suprimia mais e mais o aporte de dinheiro. Então veio o estágio e a pós-graduação em Ginecologia e Obstetrícia em Belo Horizonte. Agora, médica formada em primeiro lugar, com 40 anos, essa senhora valente já podia viajar sozinha. E fez isso quase sem recursos, que existia para muitos gastos, menos para dar-lhe um pouco de conforto e de segurança. Durante o tempo na capital, morava com irmãos, foi a pé para o hospital e usou um mesmo agasalho popular durante todo o tempo por lá. Quando ia visitar a família e pedia dinheiro ao marido, era ridicularizada, e voltava de mãos vazias.
Terminada a preparação, voltou à cidade natal e passou a trabalhar incansavelmente pelas madrugadas afora, fazendo partos. Com o seu primeiro dinheiro perguntou a cada um dos filhos o que eles queriam e comprou para eles o desejo represado há muitos anos. Adquiriu o seu primeiro Fusca e construiu a sua casa. Começava a mudar a vida da sua família.
Progrediu financeiramente e o casamento deteriorou ainda mais, a mudez e as ordens não ditas, mas obrigadas a serem adivinhadas, torturavam-na todos os minutos do dia. Comprou carro zero para o marido duas vezes. Ele queria uma mesada, mas ela negou-se, embora ele tenha feito um empréstimo no banco para ela pagar, a sua revelia.
Ainda por dez anos tentou, buscou a paz e o equilíbrio, mas não deu. Rompeu o casamento de 31 anos aos 50 anos. Respirou aliviada pela liberdade conquistada. Suspirou fundo e lamentou não ter tomado essa decisão há muito mais tempo. Agora tinha a si mesma, o seu trabalho e a sua vontade para fazer o que sempre quis e não podia: viajar, ficar leve em casa, sem olhares e gestos de censura, fazer tudo ou nada fazer, somente obedecendo à própria vontade.
Comprou tudo ou não comprou nada, trabalhou muito, ou não trabalhou tanto, viajou para países da América do Sul, para o Caribe, para a Europa. Foi feliz com o que gostava, ou seja, reunir a família, os irmãos, o pai, os filhos e os netos, viajar, estudar, fazer cursos, trabalhar e não ter de dar satisfações a ninguém, exceto a si mesma. Discreta, os apertos eram apenas seus e de uma ou duas irmãs. As decisões também.
Estar à vontade em todos os lugares não tem preço, ou tem. É preciso ser mais do que uma senhora só, é necessário arcar com todos os riscos de ser livre para errar e acertar. Muitas se acovardam. Querem a liberdade e se arrependem de encontrar-se com ela. Não Milena, uma mulher de fibra, que não aceitou viver por viver. Brava até o fim, desafiada pela morte, disse: “ se tenho uma chance, eu escolho tentar”. E sua vida foi ceifada por um câncer no cérebro aos 68 anos, na segunda cirurgia, em plena atividade intelectual. A doença não lhe deu chance não. Matou-a em 32 dias.
