Por mais que a história ensine que a presidência é uma posição de serviço público, ela também nos lembra que o poder, em suas diversas formas, tem uma irresistível propensão ao uso particular. Democracias se erguem sobre pilares como justiça e igualdade, mas, quando a porta do Palácio se fecha, as sombras do “jeitinho” se alongam, transbordando não apenas na política brasileira, mas também na chamada “maior democracia do mundo”.
Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, concedeu um perdão total e incondicional ao seu filho, Hunter Biden, que enfrentava acusações sérias, como porte ilegal de armas e evasão fiscal de mais de 1,4 milhão de dólares. As investigações, que se arrastavam há quase uma década (2014 a 2024), esbarraram num final surpreendente: a pena sumiu como poeira ao vento. Para muitos, um ato de compaixão familiar; para outros, o mais puro reflexo de um presidente que deixou sua marca sob o manto da indulgência.
Sim, até Biden, considerado uma figura de centro-esquerda, cedeu à tentação de blindar os seus. No Brasil, a cena não nos é estranha. Fernando Collor de Mello, antes de cair em desgraça, nomeava aliados e protegia interesses pessoais. Luiz Inácio Lula da Silva, em seus mandatos, enfrentou tempestades de escândalos que, por vezes, tocaram seus círculos íntimos. Michel Temer, por sua vez, foi acusado de operar como um maestro de bastidores, costurando favores em troca de estabilidade política.
O ato de Biden parece fechar um ciclo que, embora camuflado pela institucionalidade, é um sinal claro: a “justiça” do poder executivo é muitas vezes um jogo de interesses. Enquanto cidadãos comuns enfrentam a dureza das leis, aqueles próximos ao poder são, por vezes, elevados ao Olimpo da impunidade.
E aí, nos perguntamos: até onde vai o privilégio? Até onde o poder presidencial pode — ou deve — intervir no destino dos seus? É um dilema que perpassa séculos, desde os indultos monárquicos até os modernos perdões republicanos. No Brasil, o “jeitinho” virou quase uma instituição cultural, enquanto nos EUA, as ações de Biden colocam em xeque a ideia de que por lá a justiça é realmente cega.
Não é a primeira vez que se vê um presidente dobrar as regras em nome da “família”. Mas fica a reflexão: quando as portas do Planalto, da Casa Branca ou do Palácio do Eliseu se fecham, o que é mais forte — o senso de dever com a nação ou o laço de sangue? Biden já deu sua resposta. E os próximos líderes, de esquerda ou direita, farão diferente?
Seja em Brasília ou Washington, o poder sempre tem o mesmo gosto: doce para quem o tem nas mãos e amargo para quem assiste do lado de fora.
Papai pode. Mas deveria?
*Jornalista/Radialista/Filósofo