O animal e a árvore

Mara Narciso - Médica e jornalista
12/03/2019 às 06:57.
Atualizado em 05/09/2021 às 17:45

Há dois anos, a futura árvore era uma pequena muda em um saco plástico, mas no chão do jardim, logo virou arbusto. Meses depois, estava embotoado, indicando que, após a polinização, as frutinhas apareceriam. Na hora de pintar o portão com pistola, a plantinha encrespou as folhas, esticou as canelas e por muito pouco não bateu as botas. Ficou só o talo desfolhado, uma desolação. Mas a chuva veio regar o projeto, a grama e o lado vegetal do meu coração. O que vem do céu tem bom efeito sobre as plantas, diferentemente do que sai da mangueira. O pé de araçá rebrotou, deu flor e fruto, mas se atrasou, devido ao acidente, e os araçás amadureceram no outono, quando a cachorrinha chegou.

Frida é o nome dela, uma cachorrinha mestiça muito amada. Em pouco tempo descobriu a plantinha e enfiava os dentes afiados em seu talo. Colocamos uma proteção de garrafa pet para ocultar o caule, período em que o arbusto teve descanso para tomar sol, beber água, promover a fotossíntese, crescer e aguardar a próxima primavera, quando desencroa e cresce rápido.

Por seu turno, Frida também seguiu suas etapas, e, passada a fase das mordidas, resolveu virar gente, ou melhor, virar uma cachorrinha comportada, ainda que nos manipule chorando em busca de carinho. Soube ter chorado horas mortas quando viajamos, para na volta sofrer uma regressão que nem Freud reverteria. Voltou a roer móveis, rasgar panos, subir no sofá e mordiscar folhas do pé de araçá, entre outras travessuras.

Adora o jardim e corre feliz pelo pequeno gramado do canteiro, lugar onde se encontra o pé de araçá. Quando quer brincar, corre em volta dele e da estrelícia, fazendo um número oito entre um e outro, velozmente, até cansar quem tenta pegá-la.

Então, chega o verão e o pé de araçá vai se enchendo de botões, e flores, e frutinhas, e estas crescem e começam a ficar de vez, especialmente nos galhos esparramados, rentes ao chão. Brotaram baixos, mesmo depois da poda, que, eu soube, deve ser feita apenas em meses sem a letra r, em maio, junho, julho e agosto. Nos demais meses deve ser evitada.

Enquanto o ano avança, os araçás, preguiçosos fazem hora para crescer e amadurecer. Então, vejo um deles meio verdoso, mas já comestível, e arrisco comê-lo, dividindo-o com meu filho Fernando, enquanto fico esperando a natureza liberar mais um. Dias depois como outro. Mas, mistério, os outros quatro, do mesmo galho, somem, investigo e descubro Frida brincando com dois deles.

O sumiço continuou e vejo que poderei ficar sem os araçás. Frida, volta e meia, “salta como um salmão na piracema”, como me contou Fernando, e derruba as frutinhas. Estava equilibrada a disputa pelos araçás entre ela e eu, mas a conta explodiu, favorecendo a cachorrinha, quando ontem colheu três de uma vez.

Ficou ronronando, jogando os araçás pela sala, pra lá e pra cá. Perdendo feio, constatei desanimada, um placar de cerca de 12 a 2. Os três araçás estavam lambidos, mas inteiros. Meu filho os pegou, e, lavando-os na pia da cozinha, comeu os três. No topo do arbusto, ainda tem araçás de todos os tamanhos. Como estão fora do alcance de Frida, ainda poderemos nos refestelar com essa rara iguaria do cerrado. Conformemo-nos.

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