Altas eternas

Jornal O Norte
13/08/2005 às 00:55.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:50




Fernanda Araújo





Marlinda era uma menina nova, simpática, baixa, terna. Morava num bairro aparentemente tranqüilo, com ares boêmios sem muita violência.  Não falava muito, mas era muito atenta e observadora. Aos olhos das mulheres ela era uma esquisita, pois sempre usava vestidos escuros e óculos. Ao contrário dos homens, que a achavam sensual e a desejavam. Era só ela passar na porta de um boteco para que todos os homens, como trogloditas da idade média, se manifestassem com uma escrota inspiração de boca passada pelos dentes.




 Na rua, não passava quase nada, quer dizer, as coisas que aconteciam eram imperceptíveis para outras pessoas, mas Marlinda captava tudo. E dentro de cada casa daquele bairro, situações curiosas aconteciam.




Já era uma mocinha quando seu pai chegou bêbado em casa e a masturbou na cama do casal, pensando que fosse a mãe.  Um ato de extrema falta de lucidez. Marlinda, que tinha lá seus 12 anos,  intimidou-se e não fez nada. No fundo, ela até gostou.




Sua distração era ler e escrever. Aprendeu cedo. Gostava tanto que várias vezes quase foi atropelada por andar na rua lendo. Andava sempre com uma caneta e papel. Fazia anotações de tudo. Sua tara era sentar no portão de casa e ficar observando as casas da frente. Quando acontecia algo de interessante na rua ou na entrada de alguma casa, ela anotava, depois, as pessoas entravam, a ação acabava e o silêncio reinava. Quando isso acontecia, a sua imaginação determinava o final daquele episódio.




Marlinda cresceu e acabou por arrumar um namorado. Eros, um homem bem mais velho. Os homens mais velhos a chamavam mais atenção. Era de falar pouco, mas quando exteriorizava seus pensamentos, era agradável. Sentada no portão com seu namorado, viu uma cena que não poderia deixar de escrevê-la e quando acontecia isso ela esquecia o resto do mundo e se concentrava naquilo que estava fazendo. Eros, a princípio muito romântico.




Chegou a escrever na calça de Marlinda enquanto ela escrevia em seu papel: Eu gosto de você, mas ela, concentrada escrevendo nem percebeu.




A cena que ela tinha visto era na casa da família Cornélio. Lá moravam avó, mãe e filha. Nesse dia, dona Nátala gritava desesperadamente pela janela, pedindo socorro:




- Por favor, me tirem daqui, minha filha e minha neta me batem! Elas trancam a geladeira e não deixam eu comer nadinha. Me ajudem, por favor!




Mãe e filha não estavam em casa. A vizinhança se chocou diante a situação. Não sabiam o que fazer. Se chamavam a polícia ou arrombavam a casa. Foi então que filha e mãe viraram a esquina e todos voltaram para suas casas com medo. Dona Maria, a mãe, era dona de quase todas as casas que havia por ali. Tinha uma cara fechada que dói. Talvez isso explique o medo das pessoas.

 






Na garagem da casa havia um fusca branco que em toda vida de Marlinda ela nunca o vira sair de lá. Parecia uma peça de museu.




A paciência de Eros foi acabando. Ele começou a achar um saco aquela obsessão pela escrita e começou a dispensá-la. Até que ele se enjoou. Marlinda, percebendo sua indiferença, tratou logo de conquistá-lo de novo.  Resolveu perder a virgindade com seu namorado. Esperou um final de semana em que seus pais viajassem e o convidou para passar a noite lá. Arrumou toda a casa e, principalmente, o quarto. E, é claro, caneta e papel na sua escrivaninha ao lado da cama.




A janela de seu quarto dava de frente para a casa da família Cornélio. Era por volta das 19 horas quando seu namorado chegou trazendo flores para ela. Conversaram um pouco e foram para o quarto. Marlinda estava um pouco tensa, mas aos poucos os beijos quentes foram deixando-a mais à vontade. O clima começou a ficar quente. Eles deitaram na cama, ainda de roupa e, enquanto ele se deliciava lambendo o seu corpo, Marlinda, despistadamente, fazia suas anotações sobre sua primeira experiência sexual. Quando estavam quase nus, eles escutam um barulho fortíssimo, estrondoso. Marlinda olhou pela janela e era a velha dentro do fusca. Num ímpeto se levantou, botou a primeira roupa que viu pela frente e foi para fora. Foi tão de repente, que se esqueceu de pegar caneta e papel. A velha não parava de gritar e rir ao mesmo tempo. Sua filha e neta tinham ido à igreja e esquecido de trancá-la. Marlinda atravessou a rua e ficou observando-a.




-Vai ficar parada aí? Abre o portão pra mim menina - disse a velha. 




E jogou a chave da garagem para ela. Marlinda abriu o portão e, quase que num passe de mágica, não é que o fusca começou a andar!? Marlinda estava sentindo falta de algo, era a caneta e o papel. Pensou em ir correndo buscar, mas viu uma caneta dentro do fusca e foi pegá-la. Num susto, a velha arranca o fusca com Marlinda dentro e pôs-se a gritar:




- Hoje é um bom dia para se morrer.




Enquanto isso, seu namorado, sem saber o que fazer, com uma cara de tacho, pega a caneta e o papel e põe-se a escrever.




Marlinda, muito assustada, não tinha nenhum papel para escrever. Acabou por fazer suas anotações pelo corpo. O fusca ia andando desvairadamente pela cidade e a velha em devaneio gritando frases sem nexo, de liberdade. E as duas começaram a conversar sobre a vida. A velha lhe disse:




- É, às vezes penso que a vida é um jogo, uma disputa inútil. Uma amarelinha: o céu ou o inferno, uma busca sem sentido. Um risco. Paro por aqui, não quero mais brincar!!!




E dá um grito:




- Peço  altas eternas...




E tira a mão do volante dando ótimas gargalhadas. De repente o fusca bate num muro todo grafitado em que estava escrito: A vida é uma passagem, você tem que transcender pra seguir essa viagem basta enlouquecer.




A ambulância chegou e levou a velha, desacordada. Marlinda, apenas com ferimentos leves, continuou atonitamente suas escritas e saiu andando. Chegando em casa, não havia ninguém. Olhou-se no espelho, estava com o corpo fechado pelas escritas. Depois, viu em cima de sua cama os escritos que seu namorado deixara:




- Não sei como você pode dar mais atenção a uma velha que sofre do mal de Alzheimer que a mim, que sofro do mal de amor, um dos piores males da humanidade. A diferença entre estes dois males é que o primeiro não tem cura, mas as pessoas a seu redor é que sofrem. O segundo tem cura, em alguns casos, mas quem sofre é a própria pessoa, os outros nem se importam... Cansei de ser uma mera inspiração para suas escritas. Adeus, Eros.




 No outro dia, recebera a notícia que a velha tinha voltado para aquele que é o autor da vida, e que o tempo todo ela sofria realmente do mal de Alzheimer. A partir daí ela resolveu não tomar banho enquanto o tempo não apagasse aquelas escritas em seu corpo.



Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por