Aline Mendonça Luz

Jornal O Norte
19/10/2009 às 10:12.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:14

Marcelo Valmor

As damas mais famosas que se curvem. As gravadoras que se envergonhem de sua estupidez e de sua incompetência. Os programadores de radio e tv que se penitenciem por sua insensibilidade - ou sua ignorância. Os companheiros de crítica que percam seu sagrado tempo e decidam a escutá-la...


Sílvio Lancelotti- crítico musical

Quando tomei contato com a vida e a obra de Aline Mendonça Luz, veio-me à cabeça a seguinte pergunta: o que foi feito de todo esse patrimônio?

E foi tentando responder a essa pergunta que parei na casa de Cássio Ramos, e em companhia de Cléia, amiga de Aline, folheei dezenas de reportagens e anúncios de shows, cópias de críticas sempre animadoras quanto a sua trajetória como cantora e militante político/ecológica.

Enquanto isso, no quintal, o galo garnizé que Cássio adquiriu cantava, e como ninguém o atendia, cantava novamente, e foi assim até Cássio acordar, cortar alfaces, alimentá-los e retornar para a sala. Mas nesse momento já estava quase tudo anotado, tudo que interessava sobre Aline Mendonça Luz resumido e entendido. O galo, portanto, alertava o amigo de Aline para conversa que estávamos tendo: falávamos dela.

Pretensão essa de me tornar narrador de uma história tão impressionante, tão rica e ousada, tão destemida e afinada. Mas assim como Riobaldo, ouso contar a vocês aquilo que ouvi, vi, toquei e cheirei através de documentos. E disso estou certo que compreensão hão de me ter, já que não vivi a época de Aline, não ouvia suas músicas, não tinha idade para apreciar seu devotamento à causa ecológica e seu posicionamento contra a perseguição àqueles que ousaram, durante os anos de 1970, levantar a voz, mesmo que fosse somente para cantar.

Aline é herdeira de uma tradição norte mineira extremamente arraigada na alma sertaneja: a seresta. Aos seis anos cantava com a família; aos doze foi estudar no Conservatório Lorenzo Fernandes; aos dezessete mudou-se para Belo Horizonte, e depois dos dezessete foi o que sempre quis ser: livre!

O Brasil, como de resto o mundo inteiro, sofria com a crise de 1973, ano que ela desembarcou no Rio de Janeiro. Como compensação, os movimentos de contestação à Ditadura Militar saiam do plano da revolta armada para a crítica intelectual e para a ação eficaz. O MDB abrigou os que questionavam o Regime, vários compositores burlavam a censura inventando codinomes, mães procuravam filhos desaparecidos, e esposas procuravam por maridos que haviam sumido.

Foi dentro desse clima de cultura e repressão que ela se abrigou intelectualmente. E não poderia ter outra postura que não fosse a de procurar soluções para os dramas que envolviam os artistas da época. Dramas esses resumidos na tentativa de massificação do gosto popular, do apelo ao consumo extremado, e ela sentindo necessidade de se dar a vida uma cara que definitivamente não era a dela.

Aline teve oportunidades de se projetar para além da discografia que resume a sua empreitada pela indústria fonográfica, mas preferiu ser coerente consigo mesma e se lançar em um projeto capaz de dar a sua vida o sentido que ela ambicionava. Por isso mesmo, criou cooperativa para abrigar artistas ignorados pelas gravadoras, fundou um selo independente e abriu espaço para cantores, incluindo ela própria, que se propunham a um trabalho mais livre, e por isso, distante do mercado de consumo musical da época.

Mas o destino quis que ela não se entregasse somente à música. Casou-se uma primeira vez e não foi feliz. Não desistiu. Casou-se novamente, dessa vez com alguém engajado - Wilton Montenegro -, o que lhe custou alguns "aborrecimentos". Teve a casa invadida algumas vezes, enfrentou campanhas umas outras, na convicção inarredável que combatia um bom combate. Se enturmou com o meio ambiente, participou de movimentos ecológicos, questionou a Ditadura Militar, viveu.

No próximo dia 21 de outubro vão estar passados seis anos do seu falecimento, e muito pouco se viu na cidade para homenagear essa mulher multifacetada. Nenhuma sala, nenhuma, rua, nenhuma avenida carrega o nome Aline Mendonça. Alguns diriam que ela não precisa disso. Mas quem a conheceu, seja pessoalmente, seja através de documentos, sabe que a sua memória não pertence mais a família e nem aos amigos, nem aos fãs e muito menos aqueles que discordavam das suas posições. Sua memória, num claro indicativo contraditório, pertence ao futuro. Não é do direito da cidade negar a uma criança que gosta de música, perguntar a mãe ou ao pai, quando passar por um local que carrega o nome Aline Mendonça, quem foi aquela pessoa. E, quem sabe se inspirar nela. E assim como o naufrago que lança ao mar uma garrafa com uma mensagem sem latitude e nem longitude, mas simplesmente com um "venham me buscar", ou "estou vivo", a memória de Aline tem e deve ser lançada ao (m)ar.

Aline nasceu no dia 25 de dezembro de 1946 e faleceu no dia 21 de outubro de 2003. Os capricornianos como ela, portanto, são regidos por Saturno, deus do tempo. Por isso mesmo, quando mais vivem, mais felizes são, pois o tempo conspira a seu favor. Devemos lembrar também que o galo que canta no quintal de Cássio anuncia aquilo que ela foi. Esse animal, no nosso imaginário, representa Cristo, aquele que anuncia a boa nova feliz.

Nada mais ideal para a sua memória, portanto, que seja propagado pelos quatros cantos da cidade aquilo que ela foi. Para que cada criança ou adulto que pergunte quem foi Aline Mendonça Luz possam, mesmo que por um instante, dar-lhe novamente vida, e que possa ela, alegremente, habitar no meio de nós novamente.

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