Guilherme Rodrigues
Cinema é movimento (“Redundância”?... deveria ser), é som em sintonia/diálogo com a imagem – ou, brincando com o empréstimo da língua inglesa: cinema é movimento. O que afirmo é algo óbvio, sim, mas deve ser pensado, ainda que tautologicamente, numa busca na origem da palavra (longe da ingênua pretensão de ir à raiz etimológica para justificar um sentido que julgo “exato”) da renovação ou reinvenção de seu sentido. Acredito, nesse sentido, que cinema é imagem que “fala” por si, prescindido, inclusive, do verbo (da palavra) propriamente dito, ao qual muitos privilegiam como via de se “dizer” cinematograficamente – pois cinema (outra obviedade), ao contrário do que muitos já postulam, não é literatura. E “Sobre a falta de” (Montes Claros: Espiralada Filmes; 2008) de Lara Araújo (quando li na capa do DVD o título seguido da frase “Um Filme de Lara Araújo”, aquilo me soou, à primeira vista, um pretensioso pastiche), lançado no dia 03 de Julho, no Centro Cultural Hermes de Paula, em 15 minutos levou-me a esse lugar da arte cinematográfica. Lara, sobre quem sempre desejei escrever, desde que assistir a sua peça “Era Assim...”, com Ana Flávia Amaral, no Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, é uma talentosa ficcionista e dramaturga. O seu texto me surpreende pela maneira com que explora os diversos recursos da linguagem. Porém, cinema é outra coisa, sua matéria-prima, como disse, está além do verbo literário e Lara o sabe.
A história (sem que tenha uma proposta mais radical de roteiro), num primeiro momento, remeteu-me a uma temática bastante recorrente (hoje beirando ao clichê) em contos e alguns romances e, no cinema, em um grande número de curtas que tematizam o isolamento de homens e mulheres em seus apartamentos (as modernas ilhas existenciais), vítimas da diluição da própria identidade, em um contexto de urbanização da pós-modernidade. Porém aqui, o espaço já não é (ou seria melhor dizer ainda não é, já que as cidades – e a sesqüicentenária Montes Claros não se difere disso – parecem caminhar inevitavelmente para isso?) o espaço dos apartamentos das metrópoles, mas uma casa, em arquitetura tradicional (um ambiente interiorano), não mais habitada por um homem ou uma mulher em fase de amadurecimento/descobertas, mas uma senhora de meia idade, funcionária de um escritório, em seu ofício burocrático, e o resgate da sua identidade, inclusive, de uma sexualidade (insuspeita sob aquela pele/persona) silenciada pela solidão e pela rotina, no prosaico casa-trabalho-casa.
O enredo é simples, nada novo: uma solitária, fria e metódica senhora, interpretada por Marieta Araújo, que um dia, depois de observar o comportamento de um grupo de mendigos que passavam a noite na calçada frente à porta da sua casa, sente-se incomodada, mas ao mesmo tempo tentada a compartilhar aquela vida, contrária a seus padrões, mas uma nova vida (não obstante a pobreza, marcada por uma estranha sedução), para além daquele cotidiano repetitivo e corrosivo, que foi aos poucos sendo infiltrado por aquele novo mundo.
Mas não foi tanto essa história o que me chamou a atenção, e sim essa “falta de”, que me levou à própria concepção de cinema. O filme se dá na ausência de, na falta de algo, que é a própria palavra, do que não sai verbalmente para ser tangível aos ouvidos de um ouvinte, ou aos olhos de leitor, apenas às retinas atentas do espectador. E essa “falta de” ocorre, primeiro, pela ausência incômoda de um complemento nominal no título (“É ‘falta’ do quê?”), escrito não para causar suspense (recurso fajuto), mas a ausência que só se resolve com a penetração no filme. Nem há aqui as reticências, o que anula qualquer possibilidade do preenchimento verbal do espaço cobrado pelo futuro espectador. É a falta também, dentro da história, do contato com o outro, do calor humano, elidido na rotina dessa personagem sem nome (mais uma vez prescindindo do verbo), mas dotada de uma imagem, que vai ganhando significado ao longo do filme. E, por favor, não criem, nem por uma demonstração prosaica de afeto, um nome a essa personagem, ela não cabe num nome!
Quanto a trilha sonora, a parceria de Zuba, Timbó, Adriano Lellis e Rafael Meira (os dois primeiros, em especial, pelo tetê-à-tête sempre feliz), é simplesmente genial: o som (cordas e percussão) penetra a história e por ela penetrada, de forma espetacular. E juntamente com esse som, a imagem diz, cada cena, os elementos de cada cena, os gestos das personagens falam por si. E o melhor exemplo dessa sintonia/diálogo é aquela última cena (onde a música vai crescendo de repente, caminhando para a finalização do filme), em que a personagem central, deitada entre os mendigos, pega a mão de um deles, de uma forma erótica e ao mesmo tempo jocosa, trazendo-a para si, como se (“Venha cá!”) reivindicasse um carinho, o aconchego, o amor.
Lara não nos traz o novo, como já disse, mas me surpreende pela qualidade técnica e a proposta conceitual que nos revela. Além disso, é uma conquista histórica para Montes Claros, terra de Carlos Alberto Prates Correia e Alberto Graça. O filme, pioneiro na produção local, é resultado de todo um contexto de valorização e fomento da produção cinematográfica que a cidade vem vivenciando há alguns anos, com a promoção de projetos como o Cinema Comentado e eventos como o Festival de Cinema de Montes Claros, além das discussões que vem sendo ampliada por educadores, críticos, produtores e cinéfilos. “Sobre a falta de” é um bom trabalho, resultado de intensa dedicação e o Espiralada Filmes, um projeto que promete grandes vôos, presenteando Montes Claros e o Brasil com um cinema de qualidade.
* Graduando de Letras/Português pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unomontes