Mara Narciso
Médica, jornalista e autora do livro Segurando a Hiperatividade
Enquanto os simpatizantes do politicamente correto quebram a cabeça na escolha da melhor palavra, em busca de como as pessoas que têm problemas físicos gostariam de ser referidas, se portadores de deficiência, ou portadores de necessidades especiais, Riobaldo*, o personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas simplifica tudo. Na sua sabedoria de sertanejo filósofo, questiona Deus e o Céu, e conta que vinham aos montes para "pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados de horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam". E ainda que as pessoas "requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum". E mais, "só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos" (pág. 59 e 60).
Cada época tem seus costumes e é preciso nos adaptar e aceitar a nova ordem. O fato é que essas palavras hoje nos ferem. Ficamos mais sensíveis, e esses termos já não cabem no nosso pensamento. Os intolerantes com a correção política ou eufemismos, como queiram, alegam que a mudança da palavra não torna o problema menor. Nos outros. Na gente, sempre é boa a escolha de termos mais leves. E se podemos aliviar, para que atormentar o nosso próximo?
Quando o órgão que fica atrás do estômago, chamado pâncreas, não produz adequadamente o seu hormônio insulina, a glicose, ou açúcar do sangue, acumula-se, e surge o diabetes. A função da insulina é levar a glicose para os tecidos corporais, para que a vida aconteça. Didaticamente o hormônio insulina é a chave que abre a porta das células para que a glicose entre e seja transformada em energia, sendo uma substância vital.
O estilo de vida atual é um motor causador da obesidade, fator indiscutível para que o pâncreas adoeça e não consiga equilibrar a glicemia. A indústria alimentícia e o nosso modo de vida, sentados com um celular ou controle remoto nas mãos, nos levam a gastar pouca energia e a acumular reserva na forma de gordura. Assim, surge a resistência a insulina, inicialmente com grande produção do hormônio, para depois haver a necessidade de tomá-lo.
O Diabetes Mellitus é uma doença metabólica que, quando prolongadamente descontrolada, por anos a fio, leva a lesões dos vasos sanguineos e dos nervos, com o surgimento de complicações. Com todos os esclarecimentos que a imprensa bombardeia a população, ainda assim, a imagem que o diabetes tem, para o povo em geral, não é boa. O peso do diagnóstico causa um baque imenso no seio da família. Há gente que esconde o diagnóstico dos filhos, e até mesmo da mãe. Isso se dá pela má fama das complicações da doença que podem incluir cegueira, insuficiência renal (necessidade de filtrar o sangue nas máquinas de hemodiálise), amputações, e outros prejuízos.
Uma vez, mais de dez anos atrás, surgiu a tendência de amenizar esse peso, reduzindo o impacto do diagnóstico, utilizando-se de outro termo para denominar quem sofria de diabetes. Era comum o médico dar ao paciente com essa doença um cartão de identificação escrito no topo "Sou diabético. Caso esteja passando mal, favor comunicar com fulano". Tinha a medicação em uso, o telefone e o endereço da residência da pessoa e do médico. Os cuidados deveriam ser rápidos para ser revertida a situação perigosa.
Muitos se negavam a carregar esse rótulo salvador, porém outros o ostentavam sem grandes dramas. Tive uma colega que usava desde os onze anos de idade uma pulseira de aço onde estava escrito "sou diabética". Eu achava que essa denominação não tinha nada de mais. A pessoa era o que era, e não tinha como fugir daquilo, até o dia em que vi outro cartão de identificação. Para quem não tem nada a ver com o caso, acha inútil a busca de correção política, e até mesmo ridícula a troca de palavras. O mais das vezes é tema até de piadas. É como a história da pimenta nos olhos dos outros. No nosso arde e pode cegar.
No tal cartão estava escrita uma frase mais amena, que fez muita diferença para todos. Nunca mais me referi às pessoas de outra forma que não a que li naquela vez: "tenho diabetes". A modificação não é nada irrelevante. Até nos faz respirar com mais alívio.
* ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro (RJ): Editora Nova Fronteira, 8ª impressão, 2008