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Quinta-Feira,26 de Junho

Aborto e excomunhão - por Felippe Prates

Jornal O Norte
Publicado em 21/03/2009 às 11:26.Atualizado em 15/11/2021 às 06:54.

Felippe Prates



A reação indevida e desatualizada de um arcebispo em caso de interrupção legal da gravidez é pressão inaceitável sobre matéria da alçada exclusiva do Estado.



Sobre o momentoso assunto, o jornal “Folha de São Paulo”, registrou em recente editorial o espanto causado pela iniciativa do arcebispo de Recife e Olinda, dom José Cardoso Sobrinho, de excomungar a equipe médica e a mãe da menina de nove anos submetida a abortamento para interromper gravidez resultante de estupro pelo seu próprio padastro, em Alagoinha, Pernambuco.



Mais grave que o estupro, em lamentável miopia, afirmou o prelado, é o “aborto eliminar uma vida inocente”.  Deve ser  por causa dessa assombrosa linha de raciocínio, que o bispo se eximiu de aplicar a mesma pena ao estuprador.  Excomungou apenas os médicos, que realizaram um procedimento dentro da lei e eliminaram o sofrimento de uma criança, vítima de ignominiosa violência.



Não cabe a ninguém de fora da igreja questionar seus dogmas, emboramente a maioria deles remontem às fogueiras da Inquisição e há séculos tenham caído no ridículo, por extemporâneos e mais que superados.  O que ainda causa espécie é a contundência da condenação anunciada por Dom José, visivelmente mais proporcional à notoriedade do caso do que o zelo com a mofada e superada doutrina de sua igreja.



Em 2008, realizaram-se no Sistema Único de Saúde (SUS), 3241 abortos desse tipo, não clandestinos.  Eles se enquadram nas hipóteses de não punição admitidas pelo Código Penal em seu artigo l28: “se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, ou se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.  Além disso, a Justiça tem autorizado a intervenção em casos de malformação fetal que inviabiliza a vida extra-uterina.



O procedimento realizado em Pernambuco, satisfaz, portanto, à condição legal.  Duplamente até, pois os médicos avaliaram que o parto realizado na menina franzina traria risco à sua vida.  Assim, a equipe médica cumpriu com sua obrigação profissional, legal e ética, amparada, ainda, em norma técnica do Ministério da Saúde, que deixou de exigir registro de ocorrência policial como condição para fazer o aborto.  Entre milhares de casos, faroleiro e presepeiro, dom José escolheu um de enorme relevo para distribuir a excomunhão, num autêntico jogo para a arquibancada.  Esse bispo é o mesmo que, no ano passado, tentou impedir, na Justiça, a distribuição de “pílulas do dia seguinte” pela rede pública de saúde, em Pernambuco.



Por meio de pressões irresponsáveis e abusivas desse tipo, grupos religiosos, autênticos rufiões (cafetões) da boa fé dos fieis, num espetáculo de terrorismo, valendo-se principalmente da ignorância dos menos esclarecidos, conseguem dificultar e até bloquear ações inerentes è saúde pública.



Que a punição rizível porém extrema à equipe médica pernambucana não desestimule a adoção de providências médicas amparadas na lei, no caso de pessoas submetidas a dramas semelhantes.

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