A última vez - por Antônio Augusto Souto

Jornal O Norte
Publicado em 06/07/2007 às 17:39.Atualizado em 15/11/2021 às 08:08.

Antônio Augusto Souto



Acho que eu tinha entre quatorze e quinze anos, quando ele me bateu, pela última vez. Foi injusto. Eu não merecia. Não precisava tanto!



Na hora (a lembrança vai acompanhar-me até o túmulo!), tive ódio. Disse coisas que talvez não devesse: você não me bate nunca mais!



Ele não aceitou o você, exigiu senhor. Repeti o tratamento, ele repetiu os açoites. Só parou quando a mãe entrou no meio, levou-o para a cozinha e lhe deu água com açúcar.



Não chorei, não me protegi. Que batesse o quando sua mão pesada pudesse, pois seria (jurei comigo mesmo) a última vez.



Estava no meio da adolescência, estudava à noite, trabalhava em emprego fixo, pagava meus estudos, ajudava em casa e tinha meu dinheirinho guardado.



Pensei em largar tudo, sair de casa, fugir, ir para o fim do mundo, não dar notícia, jamais.



Sem dizer nada, fui tomar banho, lavar as feridas do corpo (apanhei de chicote!) e da alma. No chuveiro, pensei melhor e perdoei. Perdoei porque o amava.



Fiquei, para virar gente e, na hora precisa, cumprir minhas obrigações de filho.



Hoje, se eu pudesse comunicar-me com a eternidade, diria a ele: aquele castigo imerecido, meu pai, marcou minha vida e me fez adulto, precocemente.



Tempos depois da última surra, flagrei meu pai dizendo a um amigo que se sentia orgulhoso dos quatro filhos que tinha  eu era o terceiro. Acrescentou que nunca batera ou bateria em qualquer deles, que não faziam por merecer.



Olhei-o, nos olhos; ele fez o mesmo, em relação a mim. Senti, no seu olhar, qualquer coisa como lágrima ou pedido de perdão.



Para ser honesto, não me lembro de tê-lo visto batendo nos meus irmãos. Ainda em nome da honestidade, devo confessar que apanhei poucas vezes e, em todas elas (com exceção  da última), merecidamente.



No entanto, leitor que costuma castigar suas crias, amor e amizade, se sofrerem alguma fratura, tenha ela a extensão que tiver, nunca mais serão os mesmos.



Ajudei a manter meu pai, por muitos anos. Cuidei dele, nos momentos de doença.



Casei-me e ia visitá-lo quase que diariamente, enquanto viveu. No velório, não consegui chorar, embora o desejasse, do fundo da alma. Lembro-me de sua figura, de seus inúmeros momentos de grandeza, de seu trabalho e de suas tiradas filosóficas, como esta: “Mulher feia leva vantagem, em relação à bonita, porque, enquanto a beleza diminui, a feiúra aumenta”.



No entanto, não consigo sentir saudade dele.



Claro que aquela última vez não poderia deixar saudade. Mas o motivo que me levou a apanhar de chicote legou-me uma saudadezinha (vontade de ver e fazer de novo) leve e sorrateira: fui flagrado dando amassos (na época o nome era macete) na menininha filha do compadre vizinho. Saudadezinha do que fiz e do que não me deixaram fazer. Aquela última vez adiou minha primeira vez.



P.S. 1  O costume daquela época era assim: se rapaz “fizesse mal” a alguma donzela, só havia duas saídas  casar ou morrer.



P.S. 2  Ao digitar o P.S.1, ocorreu dúvida que jamais  tive: será que meu pai não teria agido corretamente?

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