Antônio Augusto Souto
Era uma vez uma tartaruga de oitenta e quatro anos chamada Ruga. Familiares e amigos a chamavam, carinhosamente, de Ruguinha. Era ainda jovem, pois os quelônios podem viver até trezentos anos.
Uma bela tarde, Ruguinha nadava, feliz da vida, no rio onde nascera e vivia. Nisso, deu-lhe vontade de sair e descansar, um pouquinho, na areia da margem.
Saiu e começou a caminhar, com a elegância possível a uma tartaruga de oitenta e quatro anos, pela areia ainda quente.
Nisso, inesperadamente e não se sabe de onde, surge, bem na sua frente, jacaré de aparentes dezoito anos. Chamava-se Reré Júnior Rezinho ou Juninho, para os íntimos. Estava tão próximo que Ruguinha chegou a sentir-lhe o hálito cheirando a alguma coisa como capim queimado. Assustada, retraiu a cabeça para o casco e ficou meio tonta, o coraçãozinho disparado.
Quando conseguiu controlar-se, pôs a cabeça para fora. Reré estava colado nela, olhos no fundo dos olhos. Já ia recolhendo-se ao casco, mas ele pediu, com a voz rouca e doce característica dos jacarés de qualquer idade:
- Por favor, baby, espere! I love you!
Reré usou a língua preferida dos jacarés cujo hálito recende a capim queimado. E continuou, jogando o jogo dos saúrios:
- Estou loucamente apaixonado por você, baby! Quero você! Quero casar. Você é a criatura mais linda que meus olhos já viram disse, dramaticamente, parodiando aquela canção brega.
- Mas você não enxerga que sou tartaruga, da família dos quelônios, e você é jacaré, da família dos saúrios? De mais a mais, tenho oitenta e quatro anos, enquanto você tem apenas dezoito!
- Não me venha com preconceitos, baby! Volte aqui, amanhã, às oito horas. Vou apresentá-la à minha família e oficializar logo o noivado.
- Não virei!
- Virá, sim!
Ruguinha faz meia-volta e cai no rio. Reré ficou mais um pouco na areia, sorrindo, expondo todos os dentes que um jacaré pode ter.
A noite da tartaruga foi horrível, Não pregou olhos: vou-não-vou, vou-não-vou... Virou na água o tempo todo.
Na manhã seguinte, às sete horas, ela já estava na areia, esperando pelo jacarezinho das oito.
Como é costume de todo jacaré de hálito de capim queimado, Juninho chegou às nove e meia:
- Eu sabia que você estaria aqui, baby! I love You! Vamos, agora, conhecer minha família!
Na toca dos jacarés, havia mais de vinte, todos olhando para Ruguinha, que ficou emocionada com a recepção.
- Agora, diante dos meus, o beijo de noivado!
Ela fechou os olhinhos, esticou o quanto pôdc o pescoço, entreabriu os lábios, coradinha, com os hormônios todos em ebulição...
Reré escancarou a bocarra e crau! Os outros jacarés voaram para cima dela: crau, crau, crau!
- Comeram ela, vô?
Com o casco e tudo.
Moral desta estorinha: tartaruga de qualquer idade que vai na conversa de jacaré de qualquer idade entra pelo cano e vira sopa.
P.S. Esta tentativa de fábula é recriação, para Silvinha, Ana Luísa, André e Rodrigo os netos, de texto antigo, possivelmente de Clarice Lispector e publicado, nos anos 60, na revista Senhor.