A realidade nossa de cada dia - por Antonio Augusto Souto

Jornal O Norte
Publicado em 17/08/2007 às 15:01.Atualizado em 15/11/2021 às 08:13.

Antonio Augusto Souto



Cliente que esperava a redação de documento, talvez para espairecer, levantou-se e foi à janela, olhar a paisagem de paredes, tetos enegrecidos e antenas parabólicas.



Quando concluí o que fazia, ele me chamou ao local onde se achava e mostrou-me painel publicitário enorme, que ocupava os cinco últimos andares de edifício, ao longe.



Vi garrafa porejante de gelo, em anúncio do último lançamento da Coca-Cola. Acima da garrafinha, em letras enormes e brancas, a palavra ZERO. Não consegui decodificar a mensagem pretendida pelas letras vermelhas que antecediam o ZERO.



O cliente, no entanto, tentou fazer-me ver o que achava que via: um Tarzan bundudo, estacionado no meio de floresta escura. De costas, braços pendidos e tronco ligeiramente inclinado à direita. Estaria olhando qualquer coisa  possivelmente macaquices de sua macaca predileta. Ou de Jane, a inexplicada esposa, namorada, noiva ou amante. A tanga selvática refletiria vacilante e esbranquiçada nesga de sol. Bem acima da cabeça do Rei da Selva, letreiro vermelho completamente ilegível. Pouco abaixo e em letras brancas e enormes, a palavra ZERO.



Como não estava lá essas coisas e meu tempo era curto, disse-lhe que só enxergava Coca-Cola.



Ele, então e querendo convencer-me a ver o que achava que via, convocou seu parceiro, que se achava sentado diante da minha mesa de trabalho.



Tão criativo (ou sem ter mais o que fazer) quanto o outro, o rapaz foi logo dizendo que o painel era pôster da pugilista européia que se naturalizou brasileira (pronunciou o nome: Duda Qualquer Coisa) e aparece, quase todo sábado, no início da noite, na Rede TV!, lutando, pelo pão de cada dia, contra outras mulheres do Brasil e do mundo.



- Veja, doutor, ela está de frente, usando aquele calção preto e horroroso de sempre. Com as mãos desenluvadas, encosta binóculo nos olhos, para contemplar qualquer coisa distante  talvez um nocaute perdido. Acima da cabeça dela, a palavra ZERO e, imbricada nela, AÇÚCAR.  Acima do ZERO e em letras vermelhas, está escrito SABOR. O que aparece abaixo de SABOR eu não consigo ler.



No que me tocava, ainda via apenas Coca-Cola.



Relembrei Gertrude Stein: Coca-Cola, a pausa que refresca. Mesmo preferindo guaraná, decidi abastecer minha geladeira com algumas daquelas garrafinhas.



Se eu dispusesse de tempo e me encontrasse na pele de aprendiz de poeta, até que seria capaz de concordar com os dois e acrescentar outras interpretações para o painel publicitário do refrigerante famoso no mundo inteiro.



O episódio que acabo de narrar (juro que, pelo menos em parte, é verdadeiro) trouxe-me lembrança de Fernando Pessoa: há portugueses que ainda conseguem enxergar, velejando no rio Tejo, as naus gloriosas que lá não mais estão, faz séculos.



Também me fez pensar: a realidade das coisas pertence a cada um, seja criativo, seja poeta, juiz de direito ou de futebol.

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