Délio Pinheiro *
Walter era um atleticano doente.
- Doente não, saudável. Cruzeirense é que vive doente - era uma de suas frases prediletas. A outra era:
- Em família de pai cruzeirense nasce atleticano, mas em casa de atleticano só nasce macho.
A paixão incomensurável de Walter pelo Galo, e seu imenso bigode fora de moda lhe renderam o apelido de Cerezo. E ele adorava essa alcunha. O Atlético Mineiro era sua vida. Em uma roda de truco deixou os amigos boquiabertos quando anunciou que o Atlético era sua maior paixão. Depois vinha a família.
E, entre um jogo e outro do Galo, nasceu seu único filho. O nome? Reinaldo, claro. A primeira idéia era Dario, mas sua esposa Dorotéia se opôs gravemente a essa opção. Então, ficou Reinaldo mesmo. O menino nasceu em 1990 e o primeiro presente que ganhou foi uma camisa do glorioso. O pai chamava o menino carinhosamente de galinho.
- O galinho só tá que cresce. Logo vai conhecer o Mineirão, bilu bilu...
Quando o menino fez três anos não entendeu o foguetório que aconteceu em sua rua. O menino ficou assustado com o espocar de foguetes e as buzinas frenéticas que zuniam em sua rua.
- Bando de cruzeirenses mal amados - dizia Walter Cerezo, entredentes.
A torcida do Cruzeiro comemorava um título inédito para o estado de Minas, uma Copa do Brasil:
- Coisa mixuruca Dorotéia, nós somos campeões é do Brasileirão. Isso aí é coisa de viado.
A paixão de Cerezo era bastante forte em seu glorioso e, vez e outra, a conquista de um Campeonato Mineiro o fazia bradar aos quatro cantos o famoso bordão:
- Galôôôôôô!!!
Uma vez também teve uma Copa Conmebol, que ele dizia ser mais importante que a Libertadores que o Cruzeiro ganhara em 1976:
- Pra que ganhar a Libertadores e perder o mundial lá pros alemão? Esse time só envergonha Minas, Dorotéia.
O pequeno Reinaldo foi crescendo, e em cada aniversário ganhava uma nova camisa do Galo. Quando o menino fez seis anos, uma nova festa tomou conta de sua rua. O arquirrival do Galo ganhara a tal Copa do Brasil de novo e seu pai deixou penduradas em apostas pelo menos dez caixas de cerveja nos botecos da cidade.
- Como é que pode um timinho desses ganhar do poderoso Palmeiras? - perguntava, incrédulo.
Aos sete anos, Reinaldo viu o Cruzeiro ganhar mais uma Libertadores, aquela copa quase tão importante quanto a Conmebol.
- Pai, por que o Galo também não ganha assim? - perguntou Reinaldo.
O pai falou que, com certeza, o time abriria as pernas em Tóquio. Dito e feito. O Cruzeiro perdeu para o Borussia e o pai de Reinaldo, em seu aniversário de oito anos, o presenteou com a camisa do time alemão:
- Meu galinho tá bonito que só vendo, hein Dorotéia?
Na escola, Reinaldo era capaz de brigar se algum coleguinha falasse que seu time não estava com nada.
- Nós somos campeões do gelo - repetia o menino, que não sabia sequer o que aquilo significava.
Em 2000, mais uma Copa do Brasil saiu para Minas Gerais. E de novo o Cruzeiro ganhou. E naquele ano, pela primeira vez, Reinaldo não demonstrou o mesmo entusiasmo quando ganhou a nova camisa do Galo.
Naquele mesmo ano, Cerezo comemorou o título estadual do seu Atlético:
- Tá vendo Dorotéia, aqui em Minas quem manda é nós.
Aos doze anos, Reinaldo perdeu seu entusiasmo pelo futebol.
- O menino tá crescendo, Cerezo? Ele agora já tá pensando nas namoradinhas.
Mas a verdade é que o menino já não gostava de torcer para o Atlético. Na verdade, ele nunca se sentira inteiramente atleticano e a primeira reação foi expurgar o futebol de sua vida. Mas a verdade verdadeira é que o menino descobrira um dia que seu coração balançava quando ele via a torcida do Cruzeiro e a memória daquelas noites de foguetório de sua infância o perseguia.
- Acho que tô virando cruzeirense - pensou.
Mas logo ele tratou de espantar essa suspeita. Mas aí chegou o ano de 2003.
As lembranças desse ano ainda estão frescas na memória de todos, e foi justamente em 2003 que Reinaldo virou a casaca e passou a torcer fervorosamente pelo Cruzeiro. O pai, que já desconfiava, viu o filho socar o ar comemorando um gol da raposa no Mineiro daquele maldito ano. Durante a Copa do Brasil, o menino não conseguiu segurar o grito no terceiro gol do Cruzeiro no passeio contra o Flamengo na final. O pai foi dormir contrariado, enquanto o filho sonhava em estar na rua vendo os rojões e os carros cobertos por bandeiras. Mas quando chegou o Campeonato Brasileiro, não teve jeito. O menino apareceu em casa com uma reluzente camisa estrelada que ele mesmo comprara. O pai quase enfartou.
Quando o Cruzeiro ganhou o Brasileirão, o menino berrou alucinadamente em seu quarto. O pai, entretanto, chorou copiosamente ouvindo a Itatiaia. O Cruzeiro, em sua cabeça de torcedor, finalmente se igualara ao Atlético, que já tinha o título nacional de 1971. E isso era, pra Cerezo, um motivo de decepção.
A partir desse dia as coisas ficaram bem distintas naquela casa. Ali havia duas paixões, ambas irreconciliáveis. De um lado, a paixão do pai pelo seu Galo, e do outro o jovem cruzeirense e sua súbita paixão.
Nesse ano, o pai de Reinaldo também parou de se entusiasmar tanto com seu Galo. Já tinha três anos que o time não rapava nem o Campeonato Mineiro e a conquista da chamada Tríplice Coroa pelo time do filho deixou-o temporariamente sem argumentos nas rodas de truco.
- Mas o futuro há de ser melhor, Dorotéia - profetizava o antigo torcedor.
Mas aí veio o ano de 2005 e, se por um lado o Cruzeiro pôs fim a uma angustiante seqüência de 15 anos ganhando títulos, e isso poderia ser algo a ser comemorado, teve o rebaixamento do seu Galo. Aquilo era demais para o torcedor Cerezo. Em silêncio e de maneira comedida, ele chorou lágrimas ralas, dessas que caem sem muita razão. Mais do que tristeza, ele percebeu que sentia indiferença. Indiferença por aquilo em que transformara seu sonho de menino, o time para o torcedor que, ao avistar uma camisa alvinegra secando no varal, seria capaz de torcer contra o vento, como bem definiu essa paixão o atleticano Roberto Drummond.
O rebaixamento do Galo era aviltante demais para seu coração sofrido. Ele chegou a pensar naquele samba da Beth Carvalho - Você pagou com traição a quem sempre te deu a mão - mas não havia nada para festejar naquele dia vergonhoso.
Desde esse dia, Walter não quis mais que o chamassem de Cerezo. Ele entrou para uma dessas milhares de igrejas pentecostais e está pregando a palavra de Deus com crescente entusiasmo. Nos cultos, quando lhe vem à mente a conversão do filho, ele lembra, resignado, que com um time daqueles que o Cruzeiro tinha em 2003 era para se apaixonar mesmo.
E quanto a Reinaldo, que um dia quase se chamou Dario? Bem, ele acaba de descobrir que vai ser papai. Sua mãe estava certa e ele se encantou com uma moça de sua idade e juntos já fazem planos para o futuro. Se for menino, Reinaldo já decidiu que seu primeiro filho vai se chamar Alex.
Em tempo: Essa crônica é dedicada aos meus colegas de sempre Alexandre Nobre, Andrey Librelon e Samuel Nunes.
* escritor e jornalista
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