A fantástica história de um casamento três meses após a morte da noiva

Jornal O Norte
29/07/2009 às 10:20.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:05

Marcelo Valmor


Professor universitário

Era uma noite despretensiosa. Além do frio de junho que nos obrigava a cobrir o corpo com roupas de variadas cores, havia, naquele momento, uma vontade de não dizer nada sobre a vida, de não pensar sobre nada muito complicado. Vontade havia sim de namorar, de divertir e jogar conversa fora. Estava indo para uma festa.

Festa de aniversário, que é a festa mais despretensiosa que se pode esperar. Diferente de festa de casamento, quando as atenções se voltam para o casal, para os padrinhos, para os pais da noiva e do noivo. Diferente também de festa de batizado, quando o único que não participa de fato dela é o abençoado por Deus. No aniversário, sentimos, todos nós, partes do próprio aniversariante, já que essa marcha do tempo atinge a todos sem distinção.

Conhecemo-nos numa noite assim, despretensiosamente, naturalmente, sem nenhuma obrigação afetiva, intelectual ou material. Simplesmente nos conhecemos.

Dali para um namoro foi um pulo, pois, quando descobrimos proximidades intelectuais e afetivas, o que era despretensão explodiu em cores de atração múltipla.

Foram três meses até que resolvemos, também naturalmente, conhecer as nossas famílias. Ela, do Vale do Jequitinhonha, eu, de Montes Claros, regiões de Minas Gerais. Nada mais natural que conhecesse a minha primeiro, pois esse primeiro encontro se dera na minha terra. E fomos lá. Liguei para a família, os preveni que levaria alguém para vê-los, queria que preparassem a casa.

No caminho, ela pediu para que parássemos em uma floricultura. Queria comprar flores para minha mãe. As escolhidas foram margaridas, que habitavam o bouquê com flores do campo.

A casa toda se alegrou. Conversamos, demos gargalhadas, nos alegramos todos, minha família principalmente. Afinal, naquele momento, uma pessoa nova fora apresentada a ela, e a alegria por a conhecerem enchia aquela casa de teto alto, de quartos grandes, de salas duplicadas e de cheiro de infância do mais puro sentimento de novidade.

Em um segundo momento, veio a contrapartida. Chegara o momento de viajarmos até sua casa.

O ritual que ela tinha para visitar os parentes era sempre o mesmo. Comprava, com as economias do semestre, fazendas de variadas cores e tamanhos. Havia estampados, coloridos com flores e rosas, brancos e amarelos. Tudo para agradar as mulheres da família, que se compunham de sua irmã, suas tias, a mãe e a avó, além de uma agregada por quem nutria um afeto de filha. E assim o foi. A festa se pôs tão logo chegamos. E a algazarra em sua casa, numa cidade de pouco mais de quinze mil pessoas, era total.

Conheci sua mãe viúva, sua avó, também viúva. Irmãos e cunhadas também se encontravam por lá. Levaram-me para conhecer um pequeno sítio que tinham. A mãe não se fazia de rogada, e nos finais de semana colhia as poucas frutas e verduras e as vendia no mercado local. Gente simples, mas totalmente integradas a um mundo suspenso por uma vida de valentia e afeto indescritíveis.

O casamento, diante do assentimento das famílias – a minha e a dela -, não tardou. E como toda noiva, decidira que a cerimônia seria realizada na sua cidade.

Havia uma igreja, e uma capela afastada do centro urbano. Ela decidira que casaríamos na capela. Era um total aproximado de três quilômetros de caminho de chão. Não havia lugares para mais do que umas cinquenta pessoas.

A fronte da capela era igual a qualquer outra. Uma torre só, pintada com um amarelo já desbotado e meio que empoeirado, e que lembrava muito a igreja de Matias Cardoso, cidade fundadora da cultura norte mineira. Conta-se, em relação a Matias Cardoso, que tal igreja teria sido pintada com o esforço de toda a população, que munida de ovos, apartara as gemas das claras, para em seguida fazerem grandes tonéis das gemas sob a forma de tinta.  Pintaram ela toda durante seis dias, sendo que no sétimo foi celebrada uma missa na qual todos se confraternizaram.

Com a capela da sua cidade não acontecera o mesmo, mas a impressão sobre o amarelo das suas paredes era que fora pintada não com gemas, tal qual a de Matias Cardoso, mas com ouro mesmo.

O seu interior era pobre. Bancos de madeira de lei, altar atravessado por uma grande pedra de ardósia onde se dispunha, sob a mais absoluta ordem, cálice, incensos e outros materias de ritual cristão. Duas portas laterais, uma de cada lado, agilizavam a saída ou a entrada dos seus visitantes, e duas colunas interiores sustentavam aquele espaço.

Enfim chegara o dia! Os anjos da certeza confirmaram a data! Haveria casamento!

Estava na cidade, minha família e eu, providenciando os últimos detalhes. Enquanto meus pais e irmãos cuidavam de se arrumarem, percorria a cidade com cunhados, que ora me apresentavam alguém conhecido, ora me levavam até um bar para que pudéssemos beber alguma coisa. Era esse ritual que cerca qualquer noivo de interior que me colocava em contato com um mundo distante de tudo que vivia.

Enquanto isso, na casa dela, as mulheres mais velhas davam ordens. Abater os animais para o almoço, cozinhar feijão e arroz, preparar saladas, retirar o mínimo de pó daquelas toalhas de renda tão bem cuidadas para quando chegasse o dia do casamento da filha mais nova. Até os animais pareciam sentir no ar uma atmosfera diferente, de tal forma que pastavam de um lado ao outro da casa do sítio. Evidentemente que alguns pressentiam a triste sina de servirem de alegria para os que ali se encontravam naquele dia. Mas a grande maioria parecia comungar com todo aquele ambiente de compromisso e felicidade.

A cerimônia fora marcada para as dez horas da manhã, e o trajeto até a capela seria feita numa charrete, dessas puxadas por um animal só. Dessas antigas, que tinha dois bancos de madeira, cordas gastas com o tempo, ainda um pouco suja de milho transportado no dia anterior para o silo.

Ás nove horas já me encontrava pronto. Vestia um termo simples, e carregava um cravo na lapela. Encontrei com meus cunhados e irmãos na saída da cidade, e fizemos todo o percurso até a capela caminhando. Durante esses três quilômetros cantamos e dançamos, de tal forma que faltando menos de quinze minutos, já me encontrava no interior do santuário.

Ela saiu às dez horas do sítio da mãe. Vestia um branco que só as noivas vestem. Vestido com alças finas e rendado, com grandes flores de abóboras discretamente em branco também. Longo como qualquer vestido de noiva que se preze, carregava na cabeça, ajeitando o pequeno cabelo preto, uma tiara feita de flores de laranjeira.

Subiram, ela, a mãe e a irmã, além da avó na charrete. E foram, decididas, vencer a distância que separava a condição de solteira da de casada, da de menina para a de mulher, da individualidade para uma vida em comum, de uma luta sozinha para uma agora luta a dois.

O sol já estava bem quente, e para protegê-la a avó suspendia a sombrinha sobre sua cabeça. Mas como o trajeto era acidentado, volta e meia a luz atingia uma parte do seu rosto, o que obrigou a irmã a dispor de mais um guarda sol - com medo que a maquiagem e sua tez fossem atingidas -, imediatamente posto sobre sua cabeça.

Tão logo chegou à capela, foi encaminhada até a mim pelo irmão mais velho. O pai morrera novo, e o irmão, sentindo orgulho de ocupar o lugar do patriarca, encontrava-se aparentemente mais alegre do que eu. Confortei-me, e naquele momento sabia que toda a família, sem exceção, me aceitava.

O que aconteceu a partir daí foi uma cerimônia como qualquer outra. Não me lembro de muita coisa, pois ela se passara muito rápida. Não havia, dentro de mim, uma necessidade de registrá-la com a mais clara lembrança. Restando apenas, ao final, o sim, nos dirigimos de volta ao sítio da mãe para que nos encontrássemos em volta de uma grande mesa onde eram servidas todos os tipos de bebidas, e onde a comida era sempre posta diante de mim como um grande ritual de oferendas.

A noite chegara, viajamos para Montes Claros no meu próprio carro, e dormimos na nossa casa para, no dia seguinte constatou que ela não se encontrava na nossa cama.

Procurei pela casa toda, atordoado ainda pelo clima que marcara o dia anterior, e não a encontrei. Duvidei da minha própria sanidade, e, num ato de desespero, liguei para sua irmã preocupado.

A notícia que recebi era que ela tinha falecido havia três meses, e que eu me acalmasse e procurasse rezar bastante por ela.

Havia sonhado um sonho. Havia sonhado uma vida. Nada daquilo era mentira para mim. Apenas fora adiado por uma fatalidade.

Adormeci de novo!

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