A emboscada

Jornal O Norte
Publicado em 22/03/2006 às 11:14.Atualizado em 15/11/2021 às 08:31.

Clídio Moura *



Foi decidido por todos. Teriam que matar o animal, para tirar proveito melhor de suas terras, no trato do seu rebanho. Resolveram, então, se posicionar de tocaia e na calada da noite, na proximidade do alvorecer. Sabiam que, nessas horas, seu inimigo maior passaria por aquele local. Um tiro certeiro, na cabeça. Silêncio em seguida, sem testemunhas, salvo os próprios matadores e tudo estaria resolvido e terminado.



A vítima teria que passar por aquela vereda margeada por árvores de grande porte, onde podiam nelas subir e ficar à espreita da vítima. Assim o fizeram, colocando-se em posição de tiro, empunhando suas carabinas 12.



O senhor Belchior Versa, fazendeiro abastado e latifundiário da região, nesse dia se fazia acompanhar dos melhores empregados da fazenda: Tião, seu capataz, homem destemido; e Pedrão, seu vaqueiro, pessoa valente e que por seu patrão daria a própria vida em qualquer circunstância. Estavam todos vindo a cavalo, das bandas de Orion, Quem-Quem... Iriam ver um gado para comprar. Conversavam durante a viagem.



- Tião, o gado tem que dormir preso no curral pra gente poder ter o peso real certo.



- Pois é, seu Belchior, o gado não pode pastar nem beber água porque, senão, ganha peso e a gente vai comprar por preço maior do que seu valor - respondeu o capataz Tião, dando prova do conhecimento de seu ofício.



Conversa leve, porém séria; volta e meia, em tom de brincadeira respeitosa, falavam sobre os sem-terra...



Pedrão interveio. Queria também mostrar que conhecia o assunto e acrescentou:



- Seu Belchior, eu sei separar vaca com o bucho cheio d’água de vaca prenha. Eu nunca errei e só de olho eu sei separar uma vaca da outra, e levando o gado tangido é mais fácil ainda saber se a vaca tá enxertada ou  bebeu água.



Conversa leve, porém séria; volta e meia, em tom de brincadeira respeitosa, falavam sobre os sem-terra. Diziam que eram anarquistas, falavam que eram revolucionários, idealistas, politiqueiros invasores de terra. Aí eram Tião e Pedrão que confabulavam e não chegavam a um consenso. O senhor Belchior Versa, então, interferiu e deu a versão e definição que melhor achou para a ocasião. O assunto dos sem-terra se estendeu por longo tempo. Todos ouviam atentamente e não ousavam interferir. Afinal de contas, o senhor Belchior Versa é doutor neste assunto e, mais ainda, é o patrão e tem sempre razão. Quem se atreve a questionar o chefe? Verdade, o homem é bom de prosa.   



Os homens estavam de emboscada. Armas em punho apontadas para o alvo, o tiro seria certeiro e fatal, a vítima não escaparia. Conversavam à meia-voz num diálogo monossilábico e funesto – tinha que matar. Eram três atiradores de escol: Carrasquinho, Dedo do Diabo e Zé Perigo. Eram assim conhecidos por alcunha, ninguém ao certo sabia seus nomes de batismo. Carrasquinho, porque matava por encomenda e trazia sempre a orelha ou um dedo da vítima. Dedo do Diabo, sempre que apertava o gatilho alguém morria na frente de sua mira. Zé Perigo, quem dele se aproximava corria risco de vida. Qualquer deles era prenúncio de morte, morte matada... Nos tempos de maiores aquelas, para que não digamos lá.



Carrasquinho:



- O primeiro tiro é meu. Nunca errei e vou atirar na cabeça. Não vai escapar desta vez. Diabo que o carregue!



Dedo do Diabo:



- A carapuça pega bem em mim. Se você errar, Carrasquinho, deixa o segundo tiro pra mim. Vou provar que meu nome é de valia.



Zé Perigo



- Vou descer da árvore e ficar detrás do tronco, se ocês errarem, eu resolvo tudo na faca. Vou sangrar, meto meu punhal e arranco o coração pra ver o sangue jorrar. Duvido que escape. Depois, Carrasquinho, se quiser, arranque o couro e Dedo do Diabo que o carregue.  



Quem escapará da cilada? Da traição Jesus sofreu até a morte. Deus me valha. Que tanta maldade neste mundo, meu Deus!



O senhor Belchior Versa e seus melhores homens já se aproximam do local macabro. Os cavalos caminham vagarosamente, pois pressa tinham não. Rex, cachorro de campo e companheiro inseparável do vaqueiro Pedrão se fazia presente naquela jornada. No início desta história não se falou do cão por discriminação – cachorro de vaqueiro, quá! Que importância pode ter?



O sol começava a raiar e seus raios começavam a iluminar, fracamente, aquela vereda. De repente, Rex parou e grunhiu. O senhor Belchior Versa viu um brilho que se espelhou com um raio do sol que furtivamente penetrou entre umas folhas, balançadas por uma aragem repentina.



- Pára e silêncio! Apear, gente! Tem coisa feia na frente - balbuciou o senhor Belchior Versa para os demais companheiros de jornada.



Pedrão:



- Tô sentindo cheiro de gente aí na frente, seu Belchior.



Tião:



- Serão os sem-terra de tocaia, seu Belchior?



O senhor Belchior Versa, fazendo sinal de silêncio para todos:



- Vamos apear e tentar ouvir ou ver alguma coisa.



Ficaram ali, mudos, ouvidos atentos e olhos esbugalhados, tentando ver alguma coisa à frente. Silêncio total. Nada se ouvia e nem se via. Minutos depois, o senhor Belchior Versa



- Vocês estão preparados? Eu estou pronto. Diacho, sô, isto é emboscada.



Tião:



- Pois é, tô com pressentimento de que são os sem-terra se preparando para alguma invasão. Esse povo não é de confiança, uai! Mas, aqui, nas proximidades das terras do seu Belchior, não é possível!



Pedrão:



- Há de ser mesmo os sem-terra. Tô sentindo cheiro de gente, eu nunca erro. Se fosse cheiro de animal e principalmente de gado eu sabia logo com quilômetros à distância. Labuto com gado desde menino, sô!



O senhor Belchior Versa:



- Gente, escuta bem, sem-terra por aqui, querendo o quê? Eu trabalho dia e noite. Minhas terras não têm um palmo sem cultivar. Agricultura e pecuária são minhas atividades e ocupam toda minha terra. Olha, só respeito a mata ciliar e a vegetação da reserva legal. O resto é tudo bem explorado. É emboscada!



Agora luz brilhou. Mais luzes e luzes num lusco-fusco. Os homens da espreita desceram da árvore e esconderam suas armas. Do alto da árvore avistaram uma procissão que se aproximava e teria que passar por eles naquela trilha. O plano que armaram caiu por terra.



Por outro lado, o senhor Belchior Versa, Tião e Pedrão se levantaram com ânimo. Sabiam que perigo algum mais estava correndo. Ledo engano.



De repente, de súbito, inesperadamente, eis quem surge?



A onça. Onça pintada e das grandes. Uma, não. Era um casal, duas onças enormes



A emboscada era real. Foi preparada e tinha uma finalidade. Lembra-se do que se disse antes? Dos jagunços Carrasquinho, Dedo do Diabo e Zé Perigo? Sim! Foi dito que dos mesmos quem se aproximasse corria risco de vida, mas que isso foi nos tempos atrás. Hoje, não matam ninguém, se dedicam a atividades outras, se não honrosas, menos criminosas, gostam de caçar bichos. A onça. Onça pintada e das grandes. Uma, não. Era um casal, duas onças enormes. Atravessaram a vereda ecoando seu amedrontador... RRR! RRR! RRR!



RRR! RRR! RRR!          



Rugia a onça, rugia a outra onça.



RRR! RRR! RRR! RRR! RRR! RRR!



Rugiam as duas onças. Quem vai pegar a onça?



Gritou Dedo do Diabo:



- Olha o bicho, lá vem a onça, Carrasquinho. É sua!



Carrasquinho:



- Deixei pra você, Dedo do Diabo!



Dedo do Diabo:



- Vai lá, Zé Perigo, agora é sua vez, você tem que sangrar a onça.



Povo valente e corajoso. Ah, se eu estivesse nesta história, o trem ia ficar feio para aqueles bichanos grandes! Cânticos e rezas... Parecia uma procissão. Eram uns agregados que levavam numa rede um defunto ainda quente pra uma missa de corpo presente, lá na capela, não distante, de Orion ou Quem-Quem.



Ah! O senhor Belchior Versa e sua equipe chegaram à fazenda de Justus, este era o nome do proprietário do gado a lhe ser vendido. Ao chegar, anunciou sua presença:



- Senhor Justus? Sou eu, Belchior Versa.



O doutor Justus:



- Entre, vamos tomar um café?



- Não, obrigado. Se nos permite, vou esperar no curral - respondeu o senhor Belchior Versa, e para o curral se dirigiu com seus dois empregados...



Eram cinco horas da manhã. Às seis horas, o doutor Justus veio ao curral e falou:



- Senhor Belchior Versa, vou mandar prender o gado para sua escolha, compre quantas cabeças desejar, preço e pagamento nós combinamos, pois confio muito no senhor.



- Doutor Justus, obrigado pela confiança, mas adianto que quero comprar e pagar à vista. Pouca coisa, duzentas ou trezentas cabeças. É só pra completar uma cabeceira lá na roça - disse o senhor Belchior Versa.



Agora são sete horas da manhã. Belchior Versa, impaciente. Seus auxiliares, Tião e Pedrão, coçavam a barba com vontade de lhe perguntar se ainda iria comprar o gado que não ficou preso no curral, conforme o combinado; mas não tiveram coragem de lhe fazer essa pergunta, pois conheciam bem o seu gênio: às vezes, amargo e ríspido ou durão mesmo. Patrão nervoso, é melhor calar. Também o patrão sabe melhor do que nós. Imaginaram dito capataz e vaqueiro.



- Senhor Belchior Versa, sinto muito. Não posso fazer negócio com o senhor. Com todo respeito, é que minha mulher decidiu não vender o gado - falou o doutor Justus.



- Doutor Justus, estamos na sua propriedade desde às cinco horas da manhã. Tudo conforme combinamos. Agora, às sete horas da manhã... Oh! Justus é o seu nome, mas o homem é outro. Quando souber que sua mulher quer vender gado, o senhor faz favor de não me procurar. Eu procurarei quem pode decidir vender seu gado. E até logo - respondeu o senhor Belchior Versa.



Jagunços extintos. Caçadores de onça. Comprador de gado. Missa de corpo presente para defunto ainda quente. Sem-terra ausentes. Tudo imaginação? Foi real a emboscada.



Obs.: O conto é ficção. Qualquer semelhança é mera coincidência.



* Advogado e professor universitário. Autor do livro Lá vem o trem

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