A confiança

Jornal O Norte
Publicado em 06/03/2009 às 09:26.Atualizado em 15/11/2021 às 06:52.

Ronaldo Duran


Escritor


ronaldo@ronaldoduran.com


 


Será que confiei cegamente na minha tia? Não. Eu a usei como desculpa para poder sair de casa. Pai, mãe, vacas magras, poeira, pouca água, fome. A seca que açoita o lombo como vara de marmelo. Queria sair da miséria. De primeiro, tenta-se mudar a situação. Tem-se fé que um dia a sorte chega. À medida que o tempo passa, a esperança murchando, murchando... A carne fraca, fugi. São Paulo era o oásis. Contei com passagem e primeiras despesas.



Os braços de minha tia não estavam tão abertos. Não dá para fingir cortesia na hora de dividir o que é tão pouco para a própria sobrevivência. Acenei com o emprego. Ah, sairia no dia seguinte. Arrumaria qualquer coisa. Nisso levei dois, três, quatro meses. E nada. A lógica do com experiência me excluía. Como ter experiência se não me davam chance de trabalhar?



A situação apertou. Ressabiada com a experiência de manter parentes retirantes, minha tia pediu para que eu retornasse à minha terra. Ajudou-me com as passagens. Na rodoviária, desisti. Resolvi me dar mais uma chance. O que levava no bolso, eu paguei dois ou três dias de pensão. Depois foram as pulseiras, roupas para convencer a proprietária a me deixar mais um pouco. Sem pensão, com a roupa do corpo, estava na rua. Dormia durante o dia em banco da praça. Temerosa de ser molestada, andava a noite inteira.



Senti fraqueza. Prostituição? Cederia aos vários convites recebidos na noite. Pagaria o aluguel, comeria? Nada, à fraqueza eu não cedi. Culpa de minha criação. Não passei fome, pedia nas padarias, restaurantes. Depois do primeiro ano vivendo na rua raros os homens que agüentavam chegar perto de mim.



Uma mulher e um pneu furado. Eu sentada na calçada, ela xingando o pneu. Eu, quieta. Ela chutando o pneu. Eu ofereci para trocar. Enquanto eu fazia o serviço, ela puxou conversa, como para diminuir o nervosismo, falando de sua vida azarada. Falei sobre a minha. Escutou com paciência rara. Pneu trocado, ela sorridente, me ofereceu para ir para sua casa, casa de família.



Tudo trancado. As irmãs e mãe com medo de serem roubadas. Nem liguei. A louça suja, as roupas espalhadas. Fiz faxina na casa. Quando chegaram do trabalho, me elogiaram. Surge vaga de recepcionista na empresa onde trabalhavam. Levaram-me. Fui admitida. No primeiro dia, uma burrada. O patrão me perdoou, forçado pelos apelos das colegas. Invocaram a tal falta de experiência. Provei que era capaz. E me superei. Hoje casei com um fornecedor da empresa e tenho dois filhos.



Tudo isso graças à confiança depositada em mim.

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