Uma personagem da Botânica

Mara Narciso - Jornalista e Médica
Montes Claros
14/08/2018 às 04:13.
Atualizado em 10/11/2021 às 01:54

O reino vegetal tem indivíduos, que, com sua existência fazem história pela beleza, finalidade e porte. Quanto mais longevo, mais importante fica, por atingir dimensões avantajadas, tronco volumoso e sombra fechada para amenizar o calor montes-clarense de todas as épocas, exceto no tímido inverno. Acaba por se tornar referência, local de encontro, ponto de moradia da passarada.

Não há registro sobre o dono da casa, cujo quintal dianteiro ficava o portentoso vegetal, e nem exatamente as suas dimensões, pois as referências da infância são exageradas. O esplendor da frondosa árvore atraía a atenção no final da tarde, quando, na Hora do Ângelus, se ouvia um berreiro ensurdecedor, produto do canto de milhares de pássaros que tomavam o rumo da sua casa: um monumento vivo. Usavam da sua proteção verde e irradiavam alegria numa grande festa. As aves moravam em sua gigantesca copa, para a qual poucos transeuntes deixavam de olhar, dia após dia, devido ao fervilhar de corpos alados na inquieta volta ao lar doce lar.

A personagem era uma jaqueira que ficava na Rua Dom Pedro II, do lado direito de quem ia “lá embaixo”, e marcava sombra com a sua exuberância entre as Ruas Coronel Joaquim Costa e São Francisco. Era uma árvore importante para os montes-clarenses, que transitavam por ali. Esse ser único, objeto de estudos da Botânica, prestava serviços de proteção à fauna, dando refrescância às aves e aos passantes dessa cidade desprovida de boas sombras, e contribuía para reduzir a temperatura nas imediações. E como jaqueira que era, também produzia jacas na extensão do seu caule. Ficava detrás de um muro branco e irregular, com um portãozinho entreaberto, sendo possível ver a família, sob sua sombra, em seus afazeres pelo quintal.

A casa era recuada, singela, talvez pintada com cal. A construção estava ali há muito tempo. Sofrera reformas, mas, como edificação, não parecia valer muito. O preço do terreno em área central expulsou a todos: família, casa, jaqueira e pássaros. Não se pôde fazer muito contra a especulação imobiliária predatória e a necessidade de crescer Montes Claros para cima. Uma cidade plana, cheia de território desocupado naquele tempo, de repente precisava dar espaço para mais prédios.

Acostumados àquela presença vegetal por décadas, com a luz do sol quebrada por ela, um dia os montes-clarenses encontraram tudo claro, ensolarado, pelado, desértico. A jaqueira tinha tombado ao poder de machadadas e dela não havia mais nada, apenas um buraco no chão, o desalento das pessoas, os pássaros desalojados, a ausência do canto deles em cada crepúsculo, e no seu lugar o ar quente e o calor crepitante dos paralelepípedos.

A jaqueira desapareceu. Ficaram o sol, os prédios e as lembranças. Poucas. Não temos memória, não queremos tê-la, precisamos de progresso, prédios de pé e árvores no chão. Não, isso não é verdade. Os montes-clarenses estão cansados de perder as suas árvores. Quando a cidade acorda já é tarde, restando-lhe lamentar e repudiar a ação de gente que, sem remorso, destrói o equilíbrio proporcionado por uma planta lenhosa, no caso, uma jaqueira. Que outras possam ser plantadas, mas esta não será esquecida. Anote aí.

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