Guerra de narrativas

Mara Narciso - Médica e jornalista
26/02/2019 às 07:31.
Atualizado em 05/09/2021 às 16:43

As uvas estavam verdes” é o que se diz em lugar de “eu não tive competência para alcançar as uvas”, então falo que não as queria, porque não estavam maduras. Ainda que haja uma furiosa filosofia de falar tudo, esculachar sem dar direito de resposta, há uma contracorrente de pensar uma coisa e falar outra, além das corriqueiras mentiras.

Os dois lados em que se dividiu o mundo afirmam: “como é possível o lado de lá ser tão incapaz a ponto de não ver o que eu vejo? E segue, cada um do seu jeito, na cruzada de desmoralizar o mensageiro, sem nem tentar desmontar a mensagem, quando esta lhe desagrada. Caso o conteúdo da notícia fira, e deixe mudo o receptor, este desnuda quem lhe conta o fato, apelando para injúrias descabeladas. Nas músicas de sofrência não se diz “aceita que dói menos”? A frustração, mesmo quando aceita, dói bastante.

Há uma guerra, mas a passividade permanece, a pessoa só lê o que interessa ao lado em que se posiciona, evitando abordagens que contrariam suas convicções. Cada posição, como um moto-contínuo, persiste pregando aos convertidos, inutilmente. Lembre-se, já estão catequizados. Para que repetir? Há uma blindagem relativa ao pensar diferente, numa fala assim: “não ouço, mas posso gritar”.

Mantem-se a compreensível mania de catar na informação o detalhe que lhe convém, nublando a parte incômoda. A distorção malabarista de cada versão deixa constrangidos os que preferem a verdade, e o jogo continua assustando os sensíveis, que largaram de ver os noticiários. Os ambientes reais e virtuais estão tóxicos. Alguém escreveu que “se havia vontade de mudar de país, pode ficar. O país mudou tanto, que virou outro”.

Adaptamo-nos a todo tipo de coisa. Moldamo-nos aos fatos e às conveniências. Mesmo os transparentes em suas ações, ocultam algum pensamento. Afinal, a reserva de mercado não é algo ruim. Quanto às versões, múltiplas e convincentes, são tão vívidas, que parecem reais.

Chegamos a um ponto tal que está impossível separar o feijão do pedregulho. Quebraremos dentes e cabeças, ficaremos confusos, misturando fatos e pontos de vista, sem saber quem é quem. Há dissimulações, fingimentos, vozes adocicadas apunhalando com facas impregnadas de palavras-veneno. Discute-se como será contada a história oficial. Faces sumirão das fotografias.

Quando a pessoa está em São Paulo fazendo tratamento de saúde, não estaria fazendo tratamento de doença? E da mesma forma, se há doença grave, não seria correto dizer que há risco de vida? Muitos falam “risco de morte ou risco de morrer”. E o filho de uma amiga protesta contra a frase “correr atrás do prejuízo”. Acha que se deveria dizer “correr atrás do lucro”, o que seria mais sensato. São maneiras diferentes de contar a mesma coisa.

Contida pela censura pessoal, falei muito e não falei nada. Acabei escrevendo em círculos, feito sermão de padre. Na verdade deixo o pensamento me levar, enquanto faço uma autocrítica por escrito. E assim vou escrevendo uma coisa, podendo querer dizer outra, usando figuras, omitindo algo. Afinal, cada um compreende como quer, já que está em curso uma guerra de narrativas, direita e esquerda. Qual delas prevalecerá?

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