Descontextualização

Mara Narciso - Médica e jornalista
O Norte - Montes Claros
23/10/2018 às 06:19.
Atualizado em 28/10/2021 às 01:22

As citações são usuais em textos que querem ilustrar ou fortalecer uma ideia ou ainda servir de pretexto para mostrar erudição. Podem ajudar ou atrapalhar o pensamento principal, ou até mesmo brigar com ele, quando são arrancadas de onde estão e enxertadas noutro lugar.

No dia 9 de outubro perdi Pedro Bondaczuk, jornalista e escritor gaúcho radicado em Campinas, um amigo virtual ilustradíssimo que era o campeão das citações. Durante mais de onze anos, li várias das suas produções diariamente. Aprendi muito, e, com a morte dele, também adquiri uma abstinência persistente. Ele tinha a compulsão de produzir e o fazia com qualidade. Assim, eu lia pelo menos meia dúzia dos seus textos em blogs, jornais virtuais e redes sociais todo dia. Naturalmente ficou um vácuo.

Não faço citações, trazendo somente alguns versos conhecidos de músicas ou poemas. Há alguns dias escutei “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque de Holanda. Versa sobre o seguinte episódio: chegou à cidade para explodi-la um Zepelim Prateado comandado por um senhor poderoso, que apontou muitos canhões, ameaçando transformar todo mundo em “geleia”. A música faz parte do musical “Ópera do Malandro”, de 1978, e sabe-se, desde antes de os canhões chegarem, que havia no lugar uma prostituta chamada Geni, que se deitava com todo mundo. Era desprezada, condição mostrada no refrão: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni”.

O comandante não destruiria a cidade caso Geni o servisse. O prefeito “de joelhos” e o bispo “de olhos vermelhos” foram implorar à Geni que se deitasse com o forasteiro. Ela “escondeu seu asco” e se submeteu ao “homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre”. Enquanto ouvia: “Vai com ele, vai Geni, vai com ele, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir, você dá pra qualquer um, bendita Geni”. Ela se entregou a ele assim como quem “dá-se ao carrasco”. E o moço “lambuzou-se a noite inteira”, depois, Geni virou de lado e “tentou até sorrir”.

O Zepelim Prateado partiu antes do amanhecer, “mas logo raiou o dia” e a população voltou a atormentar a prostituta: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni”. A personagem é perseguida, pouco depois de salvar a cidade, mostrando que a memória coletiva sofre de amnésia. Antes e depois lhe jogam pedras, num gesto covarde e hipócrita.

As pessoas com este nome sofreram muito na época, caso da minha cozinheira, assim evitamos tocar essa música em casa. Quando a escutei no carro, observei que, fora do contexto, o refrão de Chico Buarque soa excessivamente ofensivo, mas o conjunto da letra e da música é uma redenção, mostrando ser tênue na coletividade o limite entre o adorar e o odiar. A execração pública pode existir ou não, de acordo com os interesses da hora. Para os moralistas sem moral, bastava Geni afugentar o Zepelim prateado “com dois mil canhões assim”. Chico Buarque mostra isso até ao mais cego dos ouvintes, mas é preciso olhar com olhos de ver, para falar com boca de dizer. Pode ser injusto, mas quem tem boca vaia Roma. Ou outro lugar ou uma pessoa qualquer.

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