As penitentes

Mara Narciso - Médica e jornalista
07/05/2019 às 06:42.
Atualizado em 05/09/2021 às 18:32

A Penitente Um tem um grande jardim com gramado, árvores e flores. O lugar é cuidado por ela, que toma conta de cada folha que cai. Parece ter um complexo de divindade, pois se sente uma incapaz quando olha da porta e vê um raminho amarelado ou fora do lugar. Ali o serviço nunca termina, pois haverá um vento que lançará mais uma folha ao chão.

A Penitente Dois faz a arrumação da sua cozinha. Joga água nas paredes, do teto ao chão, tira tudo dos armários, lava, dá polimento nos alumínios, desmonta e esfrega o fogão diariamente, e todo sábado descongela a geladeira e lava o botijão de gás. Parece muito, mas ela acha que poderia fazer mais e melhor.

A Penitente Três tem quatro banheiros para lavar. Quem entra neles, pensa que são novos, e que acabaram de ser construídos. Não há um escorrido de calcário, por mínimo que seja, nem no box, nem nas louças. Algum excêntrico até comeria sentado ao chão, de tão esterilizado que o lugar aparenta. A qualidade da limpeza é de hotel cinco estrelas, com um odor de impecavelmente limpo.

A Penitente Quatro tem orgulho do assoalho sob seus cuidados. Toda a área social e íntima é de madeira. Pensa no sofrimento para manter toda aquela metragem impecável? O sinteco já se foi com o tempo, mas a cera e a luminosidade estão lá, num brilho digno dos joelhos ralados e do sofrimento dela.

A Penitente Cinco tem armários em profusão. É preciso tirar tudo de dentro, higienizá-los e organizá-los por ordem de cor, tamanho e utilidade, quase que diariamente. Esse serviço tem o infinito como limite. Sem contar os sapatos que são limpos até nos solados. Uma vez por mês alveja toda a roupa branca. Nunca está satisfeita. Não é raro encontrá-la em ação às 3 horas da manhã. O marido, quando vai dormir às 11 da noite, a chama, mas ela não consegue ir descansar, porque tem muito a fazer. Mais de uma vez, quando ele acorda, encontra a mulher na faxina de ontem, suada, desgrenhada, uma bruxa. Isso às 6 horas da manhã, e ela não consegue parar.

Todas elas podem ser uma só, e poucos poderão dizer que não conhecem alguém assim. As penitentes do lar estão em todos os lugares. São escravas das suas decisões. Não há feitor, mas se sentem flageladas pela própria obstinação até sair sangue das suas sofridas costas. Não há tronco, mas parece haver algo no centro da casa, para o sacrifício diário, e nos pés, pesados grilhões.

A sociedade patriarcal colocou esferas nos pés das mulheres. Esses serviços foram institucionalizados ao nascer, porém muitas se rebelaram e foram trabalhar fora de casa, mas, a segunda jornada as espera. Elas cuidam das crianças, de si, do trabalho fora, da casa, da roupa, da comida, das compras, das contas e ainda se ajeitam com os maridos. Não são valorizadas por isso.

As penitentes maiores são as donas de casa em tempo integral. Trabalham as obrigações diurnas, e não sossegam à noite. Depois de arrumar suas casas, arrumam gratuitamente casas de parentes.

As obsessões necessitam de tratamento psiquiátrico. Quem tem esse tipo de comportamento não admite que o tenha e não aceita se tratar, no entanto, é preciso oferecê-lo a essas vítimas de si mesmas.

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