“Quem não sabe o que procura, não entende o que encontra”. Vi e não enxerguei, mas tenho justificativas. Quase não converso com ela, olhando em seu rosto. Além do ruído do secador, falamos enquanto seca meu cabelo. Mas, afora isso, as justificativas somem. Comi mosca, mas tinha notado algo estranho. Debaixo da maquiagem, ela me parecia mais pálida a cada dia. Tinha feito exames, mas negou anemia. Tão atenciosa, estava desatenta. Seguia trabalhando numa agenda apertada. Reparei a voz rouca e arrastada, gestos em câmera lenta, mas não pensei em nada. Vi que estava demorando a executar suas tarefas. O cansaço foi camuflado pelo casamento recente, os cursos e a viagem de lua de mel.
Foi quando Mary, a minha cabeleireira, que vejo duas vezes por semana, me disse estar preocupada com o exame daquele negócio do pescoço, pois estava muito alterado. Sua ginecologista mandou repetir (tinha colhido o sangue pela segunda vez) e procurar um endocrinologista. Está falando com uma, eu lhe disse, enquanto ela me fazia a escova, e conversávamos sob o som do secador, comigo de costas para ela. Ficou de me mandar o resultado pelo WhatsApp.
O exame da tireoide é tão importante que está incluído no teste do pezinho, e, sendo positivo, para prevenir deficiência mental, o tratamento deve ser iniciado em no máximo 30 dias. O exame de TSH – Hormônio Estimulante da Tireoide, produzido na hipófise, cujo normal é de 0,4 até cinco e aumenta quando a tireoide está parando de funcionar, em Mary estava 266 mU/L. Apavorei, imaginando um T4 Livre, o hormônio que a tireoide produz e a vida depende dele, zerado. Pedi que fosse ao meu consultório no dia seguinte. Contrariando o esperado, não inchou e não engordou. As duas irmãs com hipotireoidismo, as queixas de rouquidão, dor no corpo, palidez e lentidão indicavam um mau funcionamento da tireoide. Feito o diagnóstico de hipotireoidismo, foi iniciado o tratamento de reposição hormonal, com dose crescente, e em poucos dias estará melhor. A medicação será permanente. O segundo exame confirmou com um TSH de 235 mU/L, T4 Livre de 0,25 ng/dl (valor mínimo normal 0,80), e anticorpos antiperoxidase elevados. Comparando
-se áudios, pode-se, pela mudança na voz observar a instalação da doença. No limite, é uma situação de risco, podendo entrar em coma e morrer, como uma vela que vai se apagando aos poucos até acabar.
A tireoide está para o corpo assim como a bateria está para o celular. É responsável pelo calor corporal e reflexos, estado de alerta, dormir, acordar, inteligência, raciocínio, frequência cardíaca, metabolismo e funcionamento corporal global. No hipotireoidismo o corpo fica lento, pálido, inchado e frio, o coração bate baixo e devagar. A pessoa se queixa de uso constante de agasalhos, sono excessivo, preguiça, desânimo, falta de energia, tristeza (simula problema psiquiátrico), pele áspera e ressecada, rachaduras nos pés, ganho de peso, intestino preso, aumento do volume das menstruações, dificuldade em prestar atenção e aprender. Como são sintomas inespecíficos, podem aparentar estresse, atrasando o diagnóstico, exatamente como aconteceu neste caso, que é fictício, mas que poderia ser real.