Difícil comunicação

Mara Narciso - Médica e jornalista
Montes Claros
12/06/2018 às 06:24.
Atualizado em 03/11/2021 às 03:33

Médicos desinteressados, atrasados e apressados, clientes preocupados, nervosos e dispersos. Estes são os ingredientes de uma comunicação a cada dia mais difícil. O Google é um mau conselheiro, que apavora quando fala de doenças, não define, não educa nem acalma. Uma visita ao site ajuda a elevar a temperatura dessa difícil convivência do médico e alguém que tem sintomas, um quase diagnóstico ou complicação e muito medo. O temor procede, pois muitos têm doenças graves que os poderão matar. Outros poderiam se cuidar mais e não se cuidam, porque assim estão decididos. Mudar decisões suicidas é quase impossível. Ou verdadeiramente impossível.

A mulher quer que o marido se cuide, mas ele parece não querer, porém, depois de um ano de súplicas da esposa, vem com ela para cuidar do diabetes. Traz exames e os parâmetros estão muito alterados. Desde o começo da conversa, inicialmente difícil e de quase uma hora, muitas explicações e alertas vão sendo feitos. Quando entram duas pessoas, a possibilidade de conflito é maior. Costumam acontecer disputas, diferenças nas informações e várias contradições. É necessário ser ainda mais atento para conter as brigas que surgem entre duplas durante a consulta. Um mediador exímio é uma exigência para abafar as divergências, acusações e desculpas, pois é fácil a fervura fazer o caldo derramar. A negligência do marido preocupa a mulher. Deveria emagrecer e fazer exames seriados, vir ajustar a insulina a cada três meses. Mas sumiu um ano e veio com dosagens bem piores do que antes.

Ouve, mas não quer ouvir. Mostra desinteresse e dispersão. Algumas alterações já ameaçam sua integridade física, mas parece não levar a sério os alertas sobre os órgãos alterados, ainda que saiba da necessidade de se cuidar para melhorar. Para isso é necessário sacrifício, dieta, exercício. A fuga mostra a indisponibilidade de querer fazer. E à medida que a conversa transcorre, a desatenção vai aumentando. Feitas as queixas, vem o exame físico, a análise dos exames, a mudança da receita e as explicações. O telefone celular já tinha tocado três vezes. Nenhum pedido de desculpas foi feito, durante as conversas interrompidas. Todas as mudanças necessárias, aumentos, reduções, suspensões, entrada de remédio novo e seus devidos motivos, foram justificados e logo outras repetições foram feitas, não por interesse, mas por motivo inverso. Ao terminar, a mulher perguntou algo já falado. Outra explicação foi dada, mas, diante das circunstâncias, é natural que a paciência já vá se esgotando.

Quando tudo parecia encerrado, e aconteceriam as despedidas, retornaram as perguntas primeiras, e tudo que já tinha sido exaustivamente mostrado precisava ser reiniciado. A menção ao celular que foi usado durante parte da consulta estragou tudo. É necessário explicar muitas vezes, gastar o dobro do tempo, a pessoa ficar olhando o celular, digitar, não prestar atenção, perguntar coisas já faladas, mas ao médico cabe única e exclusivamente uma postura zen, de monge budista. Algo diferente disso dá errado. Uma palavra dita e vista como mal colocada, mesmo falada com voz mansa entre sorrisos, põe tudo a perder. Assim é na vida. Assim é na profissão. Somos 25 endocrinologistas em Montes Claros. É preciso ser artista da comunicação e da paciência, pois o cliente tem sempre razão.

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