
“Alexa, toca Altemar Dutra”, diz dona Elza Queiroz, de 85 anos, para a assistente virtual que ganhou de presente. A tecnologia com que vem se acostumando é uma das coisas que nunca imaginou conhecer… Mas ao longo das décadas, ela já viu muitas mudanças no mundo: boas e más. Ao som de “Que Queres Tu de Mim”, uma das suas músicas preferidas, essa norte-mineira vai contando um pouco do que viu e viveu ao longo da vida.
Residente no bairro Morrinhos há quase 60 anos, entre uma canção e outra ela fala do momento atual, de alegrias e tristezas, e lamenta que, depois da artrite, ficou mais difícil visitar os irmãos nos bairros Roxo Verde e Cintra.
“Era prazeroso caminhar até lá! Hoje faço pequenas caminhadas em casa, vejo televisão, gosto de programas como o ‘The Voice’. E, por falar nisso, ando muito triste com a guerra, lamento por tudo que está acontecendo com os ucranianos. Meu coração corta”, revela.
Natural de Tabual, zona rural de Francisco Sá, dona Elza veio para Montes Claros ainda adolescente, no fim dos anos 40, com a mãe Maria, que havia ficado viúva, os irmãos Joaquim, José, João e Edith.
“José veio a cavalo, e nós viemos de carro de boi. Deixamos para trás a vida no campo, as brincadeiras de roda, bonecas de pano e sabugo de milho. Gostávamos de jogar versos e de também de irmos até uma lagoa próxima à nossa casa, ver aquela fartura de peixe. Uma infância feliz. Era diversão pura. Não tinha luz, usávamos a lamparina. No fogão de lenha, meu pai pegava a espiga de milho e ia tirando os grãos, sentado na beira do fogo, fazia pipoca para nós”, diz.
Em Montes Claros, dona Elza chegou aos 13 anos e foi morar no bairro Cintra, na rua Juramento. Era uma alegria ver os carros de boi passando na rua, apesar de muita poeira. Não havia água encanada. Apenas cisterna.
“Uma água boa. Meu irmão João, conhecido como Dão, mora lá com a família e a cisterna é a mesma. Fizemos muitos amigos como dona Sabina, uma senhora que ajudava as pessoas, ela tinha um bloco de pastorinhas de que fiz parte. Mandávamos fazer os vestidos e apresentávamos nas casas do bairro. As famílias nos recebiam com muita alegria, com café e biscoito. A gente retribuía cantando: “Pastorinha saia fora do arrozal, vem cantar o doce hino que hoje é noite de Natal”, conta.
Matriculada na escola do bairro, tem boas lembranças da primeira professora, dona Ló Alves, casada com Antônio Alves. “A família deles trabalhava com lavoura e gado”, recorda.
“Depois fui para uma escola no centro, o Vidinha Pires. Tive uma professora, a dona Lucy Pimenta, uma verdadeira mãe para os alunos. A escola servia uma merenda muito boa, o mingau de fubá muito saboroso numas canequinhas de alumínio num brilho só. A Lucy também levava a gente para estudar na casa dela”, conta.
Do bairro Cintra, a família se mudou para o Centro da cidade, na rua Pedro Montes Claros, depois rua Santa Efigênia e por fim, para o Morrinhos, onde reside há quase 60 anos.
Ela lembra que a rua Melo Viana era só a poeira. “Paguei o asfalto a prestação, na época do prefeito Toninho Rebello. Aqui no bairro fiz muitos amigos, como dona Lió, uma mulher dinâmica, com marido ferroviário. Os filhos todos desse casal tiveram a oportunidade de estudar e, com muita honra, foi ela que batizou a minha filha caçula, a Adriana”, conta, revolvendo a memória.
Sentada à mesa de sucupira, presente do saudoso filho Haroldo há 40 anos, ela se emociona ao recordar de vizinhos como seu Neco e dona Olivia, Guilhermina e Braz Roquete, dona Tunica e seu Pidoca, dona Maria Sarmento, dona Branca e seu João Militão, Calu e Levi Pimenta.
“Levi Pimenta construiu a casa mais bonita da rua. Já a dona Linda, junto com os filhos, fundou o bloco carnavalesco Destak. Meus meninos, Wilson, Haroldo, Raquel e Adriana, cresceram ao lado dessa gente talentosa e acima de tudo uma família”.
Das lembranças daquele tempo que permanecem vivas está o batuque dos catopês, que nascido no Morrinhos, encanta o mundo quando sopram os ventos de agosto.
Dona Elza foi costureira, trabalhou em serviços gerais nas escolas municipais e continua uma exímia cozinheira.
Como diz a canção de Altemar Dutra, que ela tanto gosta: “Romântico é sonhar/ E eu sonho assim/ Cantando estas canções/Para quem ama igual a mim”. Os versos são quase uma tradução literal da mulher guerreira que soube criar os filhos com amor, dedicação e pulso firme. Em uma época que as mulheres não tinham a independência dos dias de hoje, dona Elza criou os filhos sozinha e, já naquele tempo, provou que a mulher nunca foi frágil, mas pode, sim, ser o que ela quiser.