Manoel Freitas
Repórter
onorte@onorte.net
Nos próximos dias 10 e 11 de fevereiro, São João das Missões será a capital nacional dos índios. Nesses dias, com o apoio do CIMI – Conselho Indigenista Missionário e da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, a tribo dos Xakriabá promoverá, em suas terras, a Romaria dos Mártires da Terra Xakriabá, com a presença de representantes de nações indígenas de todo o Brasil.
O evento marca os 20 anos da “Chacina Xakriabá”, que repercutiu internacionalmente. É que, em 11 de fevereiro de 1987, a maior das etnias de Minas Gerais teve um de seus dias mais sangrento.
Na madrugada, um grupo de grileiros, sob a liderança de Francisco de Assis Amaro, invadiu a aldeia Sapé, arrombou a casa do vice-cacique Rosalino Gomes de Oliveira e iniciou um tiroteio. Rosalino, pai do atual prefeito José Nunes e do cacique Domingos Nunes, há três décadas uma de suas lideranças mais importantes, foi brutalmente assassinado, juntamente com mais dois indígenas, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana.
A data é importantíssima porque a barbárie, encomendada por fazendeiros, elevava para nove o número de índios mortos naquele período. O julgamento dos acusados foi realizado pela Justiça Federal em Belo Horizonte, em setembro de 1988. Os matadores foram condenados a 81 anos de prisão, sendo que o grileiro Francisco de Assis Amaro recebeu a maior pena: 27 anos.
E, apesar de ter sido considerado genocídio, como na época não havia ainda o agravamento da pena em função de crimes hediondos, os pistoleiros cumpriram um terço da pena e todos gozam hoje de liberdade, inclusive o autor intelectual da chacina Francisco de Assis Amaro, conhecido como Senhor Amaro, comerciante em Januária e membro de uma das famílias mais abastadas da micro-região do Vale do Peruaçu (Alto Médio São Francisco).
O FANTÁSTICO MUNDO SUBTERRÂNEO DE MISSÕES
O território Xakriabá integra a área de impacto do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. Portanto, uma das regiões com maior número de cavernas, sendo também rica em abrigos e tocas onde se localiza grande parte dos mais importantes sítios arqueológicos e depósitos fossíferos do Brasil.
Um universo à parte, abaixo de nossos pés, de incalculável valor cientifico, histórico e cultural. Para exemplificar a relevância desse misterioso mundo subterrâneo, em todo o Brasil existem na atualidade três mil cavernas cadastradas no banco de dados da Sociedade Brasileira de Espeleologia.
O município corresponde a uma importante área de preservação ambiental que reúne, em seus limites, um grande elenco de sítios e monumentos naturais com reconhecida importância do ponto de vista ecológico. De modo que, por trás da escuridão das cavernas subterrâneas, se esconde um tesouro arqueológico tão fascinante quanto incógnito, trazendo em sua verdadeira essência muito da história de seu povo, que há séculos habita as margens do Rio Itacarambi.
Toda a reportagem fotográfica foi feita, nas cavernas, utilizando apenas uma pequena luz de carbureto. Os diversos organismos que habitam a escuridão absoluta, apresentam necessidades diferentes em termos de micro clima, razão pela qual as grutas são muito diferentes. Consequentemente, cada região da caverna é habitada por uma fauna, mais ou menos diversa das demais, dependendo da variação do ambiente físico.
Esses importantes condutos subterrâneos revelam, além das belezas já catalogadas, um incrível potencial para novas descobertas, que se faz nos dias atuais com o indispensável apoio de exploradores anônimos, que promovem não apenas o mapeamento das cavernas, como educam a população no sentido de preservar seus salões, alguns tão altos como hipnóticas catedrais.
É que o Rio Itacarambi, em seu trajeto rumo ao Rio São Francisco, criou cavernas espetaculares no Vale do Peruaçu, verdadeiras obras-primas do carste brasileiro. E é no interior das cavernas e nos locais abrigados pela rocha é que se escondem os vestígios de vida cotidiana de nossos antepassados, num cenário de exuberância em meio ao silêncio da mata.
AS PEGADAS DE NOSSOS ANTEPASSADOS
É incontestável a importância das pinturas rupestres dos diversos sítios arqueológicos localizados nas terras indígenas. Obras de arte que, há milhares de anos, resistem à ação do tempo e revelam um pouco da história de nossos antepassados. De modo que os Xakriabá guardam um verdadeiro tesouro em suas montanhas: rastros que enchem de luz os nossos olhos e ornamentam, como legítimas obras de arte, seus paredões.
As pinturas rupestres que se espalham pelo complexo de cavernas indígena, indicam claramente que o local foi habitado por populações pré-históricas.
Pinturas rupestres registram presença de populações
pré-históricas na região (fotos: Manoel Freitas)
A bem da verdade, não é preciso ser nenhum especialista para perceber que, mesmo a despeito de inexistir estudos sistemáticos sobre esta arte, envolvendo aspectos históricos, metodológicos ou técnico-científicos, algumas pinturas levantadas por trabalhos técnicos indicam que os índios guardam em seu solo um verdadeiro tesouro.
A cor mais antiga usada nas pinturas, classificadas como “Tradição São Francisco” era o vermelho, extraído da hematita (óxido de ferro). Para obter tons claros ou escuros, aquecia-se a tinta. Com o tempo, outras cores nasceram de diversas matérias-primas minerais: amarelo (goetita ou kaolinita), branco (cipsita), cinza (hematita misturada a kaolinita) e preto, extraída de ossos de animais queimados.
TRADIÇÕES PRESERVADAS
Até pouco tempo atrás, os índios só se vestiam à caráter em ocasiões especiais. Contudo, na medida em que foram ocupando espaços, conquistando mandatos eletivos e consolidando avanços históricos, passaram a incorporar a pintura e o artesanato ao cotidiano.
Os irmãos Salvino e Francisco: o artesanato como arte e meio de preservar costumes. Francisco, o da direita, faleceu em 2005
Na tribo, a arte de confecção de artesanato, de vestes e pintura dos corpos sãos passados de pai para filho. Na aldeia Morro Falhado, próximo à sede da reserva, os irmãos Salvino e Francisco Ferreira Gama, o Chico Bicho, foram fotografados e entrevistados pelo repórter Manoel Freitas, em 2005.
Pouco tempo depois, Francisco veio a falecer, mas enquanto viveu, ao lado do irmão, formou a dupla de artesãos de maior destaque da tribo.Além de produzirem os adornos para os demais indígenas, também comercializam seus trabalhos em eventos que participam em várias partes do país.
Os irmãos lembravam, na época, que as peças de artesanato, quase sempre, eram produzidas com a madeira do Tapicuru, árvore muito comum no semi-árido. Já na pintura do corpo, utilizavam tinta extraída do Jenipapo, misturada com carvão, que fica na pele por aproximadamente 15 dias.
SABEDORIA CENTENÁRIA
Dona Ercina Bispo Santana, mora no Brejo Mata-Fome. Avô do prefeito José Nunes e do cacique Domingos Nunes, com mais de 100 anos de idade, recebeu em 2004 da Assembléia Legislativa de Minas Gerais homenagem especial. “O Estado reconhece que o território nacional, com suas riquezas naturais, tem suas raízes históricas consagradas pelas vidas indígenas que povoaram pioneiramente este chão”.
- Rodrigo não morreu, mudou para o céu – disse Dona Ercina com os olhos represando lágrimas, após a morte do ex-cacique Rodrigão.
IGREJA COMPLETA 310 ANOS
A Igreja de São João Batista, padroeiro de São João das Missões, foi erguida pelos jesuítas entre 1697 e 1698, com a força do trabalho dos Xakriabá, conseguido de forma amigável, através do escambo, realizado com pedaços de tecidos, espelhos, pratos, talheres, machados e facões.
Desmoronou em 1903, só ficando de pé a capela-mor. Um mês depois, tinha início sua reconstrução, no mesmo lugar e com as mesmas dimensões. Em menos de dois anos, a nova igreja estava aberta outra vez aos fiéis.
Os índios Xakriabá não apenas ajudaram na construção da Igreja de São João Batista. Estevão Oliveira, conhecido como “Trinca de Ferro”, o último remanescente a falar fluentemente o idioma nativo, foi quem confeccionou artesanalmente (em 1698) a imagem de São João dos Índios, denominação que o arraial passou a ter até sua elevação à categoria de distrito de Itacarambi, sob a denominação de São João das Missões.
TRIBO É A MAIOR DE MINAS
São João das Missões, no qual os Xakriabá ocupam 70% de seu território, em 27 aldeias, localiza-se entre os municípios de Manga e Itacarambi, a 240 quilômetros de Montes Claros. Tem esse nome porque foi no dia 24 de junho e 1695 que, perseguidos pelo bandeirante Matias Cardoso, na foz do Rio Itacarambi, foram surpreendidos e quase que exterminados.
Como naquela época os acontecimentos mais importantes eram associados às datas religiosas, esse primeiro contato e confronto com os brancos (com o suporte de índios mansos, padres e escravos) ocorreu no dia 24 de junho, consagrado a São João Batista, deram a localidade a denominação de São João.
Brejo Mata-Fome, aldeia que é sede da nação indígena Xakriabá. A escola modelo, que se destaca entre a vegetação, foi um projeto desenvolvido pela comunidade e por técnicos do Instituto Histórico e Cultural de Minas Gerais. O projeto arquitetônico foi concebido de formas semelhante às habitações mais antigas
Na verdade, resistiram até hoje porque souberam dosar coragem com paciência. Tanto é verdade que, dos mais de 100 grupos indígenas de Minas Gerais, o tempo se incumbiu de dizimar a quase totalidade.
População praticamente em extinção, os índios de Minas estão reduzidos a cinco grupos: Xakriabá, Krenak, Maxacali, Pataxó e Pankararu. Esses grupos, que ainda sobrevivem em algumas reservas, continuam a praticar seus cultos e atividades primitivas. Os Xakriabá são os mais numerosos: dos 10 mil índios do estado, oito mil moram em suas aldeias. Ainda assim, segundo a FUNAI, por sua índole, dão menos demandas do que nações indígenas muitíssimo menores.
MORRE UMA DAS MAIORES LIDERANÇAS INDÍGENAS DO BRASIL
Manoel Gomes de Oliveira, o cacique Rodrigão, uma das maiores lideranças indígenas do Brasil, responsável por preponderante parcela das conquistas da etnia, faleceu no dia 25 de abril de 2003, por insuficiência cárdio-digestiva. O cacique era filiado ao PDT e exerceu dois mandatos de vice-prefeito.
No período da ditadura militar, chegou a ser preso no DOPS, em Belo Horizonte, na companhia da esposa Rosa de Araújo. Frequentemente viajava para Belo Horizonte e Brasília, para defender os interesses de sua gente.
Não obstante os poderes concedidos aos caciques, sempre procurou resolver seus problemas através do diálogo. Na verdade, deixou como legado uma história de lutas que produziu conquistas memoráveis.
HISTÓRIA ESCRITA A SANGUE
A nação indígena Xakriabá foi contatada em período remoto da história da colonização. Foi no século XVI que a expedição do bandeirante Matias Cardoso perseguiu e surpreendeu os Xakriabá aldeados às margens do Rio Itacarambi. Num duelo desigual das raças, decretaram a morte de centenas de nativos, tingindo – de vermelho – as águas do rio no histórico dia 24 de junho de 1.695.
O processo histórico de catequese dos silvícolas e de colonização da terra foi caracterizado pelo uso indiscriminado da violência contra aos nativos, através de guerrilhas de repressão e extermínio, resultando em um verdadeiro genocídio.
Os sobreviventes desta raça foram obrigados a desenvolver diversificados meios e estratégias de sobrevivência, ao preço da renúncia de suas tradições, despojados praticamente de tudo e desenraizados do seu mundo original.
Para escaparem às perseguições dos colonizadores, utilizavam a camuflagem dos diferenciais étnicos (língua, uso e costumes) que - uma vez à vista - tornavam os índios vulneráveis à repressão e às violências de colonos e colonizadores.
Em 1726, ao retornar ao Norte de Minas, Januário Cardoso de Almeida, filho do bandeirante Matias Cardoso e seu sucessor, encontra o decadente Arraial de Morrinhos, fundado pelo pai, arrasado pelos ataques de índios e pelas sucessivas enchentes.
É nessa fase que a etnia da “Missão de São João”, recebe, em doação por parte de Januário Cardoso – devidamente autorizado pela Coroa Portuguesa – uma faixa de terras cujos limites foram definidos em documento firmado no Arraial de Morrinhos (lavrado em 10 de fevereiro de 1728), que ecoava como uma “constituição” para os índios, denotando a presença de uma missão de catequese, com um aldeamento às margens do Rio Itacarambi
A MISCIGENAÇÃO
A partir do século XIX, passam a receber e estabelecer contatos com retirantes baianos, emigrantes da região seca do sul e negros alforriados, que edificaram uma valha couto no território dos cablocos. Sabendo que ali se tratava de terras indígenas, os emigrantes pediam permissão ao cacique para cultivar a terra, fazer roçados e moradas. Permissão concedida, estabelecia-se o pacto e o líder determinava o local para compartilhar o território.
A diversidade dos Xakriabá foi tecida ao longo do tempo, de geração em geração, através da miscigenação provocada pelos casamentos espúrios e as alianças políticas. Desta forma, os Xakriabá, marcados por uma história de lutas e acordos, garantiram a ocupação de um grande território, sob a liderança incontestável dos seus caciques.
Com o passar do tempo, os filhos de ocupantes vieram reivindicar a propriedade da terra, resultando em diversos conflitos. Esses embates se agravaram com a edição da Lei da Terra, em 1850, que versava sobre o reordenamento fundiário, através da consolidação das propriedades rurais, via procedimentos cartoriais, onde a titulação passava a sobrepor a posse efetiva da terra. Com essa lei, a integridade do território é ameaçada não apenas pelos descendentes dos imigrantes do sertão baiano, mas, também, por fazendeiros que tentavam titular a terra indígena como suas. O grupo respondeu a essa ofensiva, constituindo um representante e registrando o termo de doação de 1728.
O INCÊNDIO DO CURRAL DE VARAS
É a partir dessa nova ofensiva que ocorre um dos mais graves conflitos já registrados na história Xakriabá: o episódio do Incêndio do Curral de Varas, ocorrido em 1927, quando os índios incendiaram um curral construído com varas e estacas de aroeira por fazendeiros em território indígena, próximo ao local onde realizavam seus rituais religiosos.
Em represália, os índios sofreram um verdadeiro massacre, com o auxílio de forças da Polícia Militar de Minas Gerais. O resultado foi a morte de um grande número de nativos e na dispersão do grupo por algum tempo.
Em 1949, com a promulgação da Lei n° 550, o território indígena experimenta mais um duro golpe: a reserva passa a ser considerada área devoluta. O controle territorial indígena sofre então enorme abalo, ao serem os índios declarados pelo Estado como “posseiros”;
Mesmo assim, resistem e conseguem manter o controle territorial até o final da década de 70, quando os órgãos fundiários oficiais começaram a intervir na região. Sob tanta ameaça e continuamente pressionados para vender suas supostas posses – antes que as perdessem em definitivo – muitas famílias venderam faixas de terras por preços irrisórios.
Nessa época, o IDRA, órgão federal, cadastrou para fins de reforma agrária os ocupantes indígenas da região, oportunidade reconhecida por algumas famílias como necessária para garantir a posse territorial. Posteriormente, o Instituto de Terras de Minas Gerais, através da RURALMINAS, intervém na região, titulando as posses adquiridas por não índios.
Tal intervenção desconheceu o direito indígena sob o território, o que ocasionou inúmeros conflitos. De forma que a perda der faixas territoriais veio se consubstanciar no não reconhecimento oficial dos direitos territoriais, seguido da exclusão das famílias indígenas dos mecanismos de regularização, posto quer a grande maioria não podia preencher as condições impostas pela RURALMINAS, como pagar taxas previstas nos contratos de renda e ocupação, bem como atender ao módulo mínimo de 110 hectares.
Dessa maneira, apesar de perderem faixas do território, continuariam ocupando-o em faixas remanescentes, aguardando providências reivindicadas junto à FUNAI no sentido de regularização da terá, o que veio a ocorrer em 1978.
Em 1997, as suas aldeias deixam de fazer parte do município de Itacarambi, com a emancipação política de São João das Missões. Em maio de 2003, novo avanço para a etnia: metade do único distrito de São João das Missões, Rancharia, com 6.798 hectares, foi incorporado ao território indígena.
Atualmente, dos 12.080 habitantes de São João das Missões, nada menos do que oito mil habitam suas 27 aldeias, ocupando mais de 70% de seu território. E, apesar desses avanços, a área corresponde hoje a apenas um terço do território original.