O cangaceiro que virou personagem de Guimarães Rosa: Rotílio de Souza Manduca é parte da história de Brasília de Minas e dos sertões

Jornal O Norte
Publicado em 05/04/2006 às 13:29.Atualizado em 15/11/2021 às 08:32.

Fernando Almeida


Correspondente



BRASÍLIA DE MINAS  - No início do século XIX, um personagem vindo da Bahia marcou para sempre a história de Brasília no Norte de Minas Gerais: Rotílio de Souza Manduca, homem de espírito irrequieto e belicoso, que procurou a região como refúgio, pois as condições locais lhe ofereciam maior segurança. Embora tenha residido pouco tempo em Brasília de Minas, deixou impagável a sua figura, em razão do seu modo de viver.  Rotílio era um homem inteligente, possuidor de regular cultura intelectual e prática na vida, impressionava bem nos primeiros contatos pessoais. 



Sua esposa, dona Luzia Manduca, era a virtude personificada. Católica praticante, sempre estava a favor do marido, mas temia ter a qualquer momento um desfecho desagradável envolvendo sua pessoa. Ao sair de Brasília, Manduca deixou vários inimigos. Sua desafeição maior era contra Joaquim Rocha.



GRANDE SERTÃO: VEREDAS  



Mesmo não sendo um personagem tão conhecido na história do sertão brasileiro, quem leu o livro Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, pode ter uma idéia do que foi a figura de Rotílio, pois, segundo uma pesquisa feita por Levínio Castilho e endossada por Saul Martins, antropólogo, especialista em folclore e professor da UFMG, Zé Bebelo é a encarnação de Rotílio Manduca. Afirmação cabal e conclusiva, emanada de duas pessoas de Januária, amadurecidas por anos de estudo das coisas do São Francisco.



De saída, convém dizer que o nome de Rotílio Manduca aparece no Grande Sertão nas páginas 341, 346 e 368.  Cabe, então, a suspeita de que Guimarães Rosa queria deixar alguns indícios que permitiriam, aos mais curiosos, descobrir a identidade de Zé Bebelo. Lê-se no Grande Sertão:



“Aquele – sequinho, espigadinho, vestido cidadão, com mãozinhas pequenas, pezinhos – e do ar sempre assustado constantemente. Dele sozinho, o que se diz: umas duzentas mortes! Conheceu, o senhor? No barranco do São Francisco – o coronel Rotílio Manduca – em sua Fazenda Baluarte! (GS, p. 346)”.



Rotílio, que era um misto de cangaceiro e aspirante político, ganhou fama por querer botar ordem nos sertões. Como “justiceiro”, correu pelo São Francisco, por onde deve ter matado duzentas pessoas. Por isso, sua lenda mantém-se viva até hoje no Vale do São Francisco, nos sertões do Abaeté, Januária, Itacambira, Coração de Jesus, Pirapora e outras cidades que lhe serviram de refúgio como Brasília de Minas.



DIRETO DE REMANSO



Rotílio Manduca nasceu em 1885, em Remanso, na Bahia, cidade hoje submersa pelas águas da represa de Sobradinho. Lá estudou e certamente concluiu o segundo grau, tornando-se um autodidata a partir de então. Segundo informações do professor Saul Martins, ele era filho do casal José Bertoldo Manduca e Inácia de Loiola Manduca. A fama e a valentia de Rotílio começaram quando ele era ainda garoto.



“Conta-se que seu genitor, um barqueiro, se juntara a uma concubina, com quem passou a morar, na sua barca de frete, assim desprezando a esposa, faltando mesmo com a responsabilidade de sustento da família”.



Certo dia, ante a difícil situação financeira em que se encontrava, com seus irmãos passando fome, Rotílio pega a carabina do pai e mata o vigia da barca, ferindo seu genitor, levando este a reassumir seu compromisso com a família.



No Rio de Janeiro, Rotílio freqüentava rodas políticas e intelectuais, lia os clássicos e fazia versos. Mas seu habitat era o sertão do São Francisco. Jamais poderia romper o cordão umbilical que o prendia à realidade sertaneja. Ali nasceu e ali encontraria seu fim. Morreu esfaqueado por um indivíduo conhecido por Mesquinheza, a quem Rotilio havia dado uma surra e que  prometeu vingança, na cidade da Barra, num camarote do vapor “Wenceslau Braz”, da Cia. Navegação Mineira do São Francisco, no dia três de maio de 1930, navio comandado por Pedro Manduca, seu irmão. A família deste espalhou-se pela região sanfranciscana.



ASSASSINADO NA REDE



Rotílio foi esfaqueado quando dormia numa rede, balançada pelas águas do Velho Chico. O rio que o embalou em sua infância, que abriu os caminhos para sua ascensão, como líder de jagunços e de justiceiros; o rio que o aproximou dos poderosos e da intelectualidade; o mesmo rio, enfim, que embalaria a rede que seria sua mortalha. Assim morreu Rotílio Manduca. Até que renasceu para a eternidade no corpo de Zé Bebelo, no Grande Sertão Veredas. Seu epitáfio pode ser encontrado na literatura de cordel:



Rotílio, cabra valente


Mais danado e inteligente


Que o São Francisco já viu;


Mais ligeiro que a piranha,


Foi o cabra de mais manha


Que mulher de homem pariu.



CANGACEIRO NA ALTA SOCIEDADE



Rotílio, além de cangaceiro, tinha outra “vida”. Despia seu gibão de couro de sertanejo e envergava ternos de linho da alta sociedade carioca, a fim de circular livremente no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Sobre essa “identidade” de Rotílio Manduca, Alberto Deodato, jornalista, escritor e político, deixou um relato surpreendente:



– Em 1919, uma tarde, eu estava na Folha, de Medeiros de Albuquerque, de que era redator. Procurou-me um senhor moreno fechado. Apresentou-se-me. “Sou o coronel Rocha, de Brasília de Minas, amigo de Rotílio. Ele soube de sua formatura e me pediu que lhe entregasse esse presente...” Era o anel de grau, um lindo anel, que sempre usei. Três meses depois, quem me entra pelo quarto adentro? O Rotílio de carne e osso. Moreno queimado. De óculos pretos. Bem vestido. Magro e ágil. Eu morava, agora, na Rua da Lapa, 56. Um quarto de fundo, com duas camas: a minha e a do Ciro Vieira da Cunha. Enfiou a mala no meu quarto. Vinha passar uns dias comigo”.



O estudante Alberto Deodato conheceu Rotílio em Pirapora, passagem obrigatória para quem transitava pelo São Francisco, do Nordeste para Minas Gerais. Os dois tornaram-se amigos. No Rio de Janeiro, onde Rotílio freqüentava rodas políticas e alta sociedade.



A COZINHERA DO HOMEM



Vive em uma fazenda em Angicos, distrito de Brasília de Minas, dona Josina, 99 anos, que foi cozinheira do cangaceiro na região. Ela, ainda moça jovem, abandonou a família e enfrentou todos os preconceitos, passando por cima dos valores morais daquela época, e foi morar na casa de Rotílio onde, segundo ela, cozinhava para todo o bando e cuidava de um filho do casal Manduca.



Dona Josina é vista na região como mulher corajosa, não só por ter morado com um cangaceiro, mas também por ter ousado enfrentar uma sociedade tão machista e conservadora. Perguntada se gostou de morar na casa de Rotílio, dona Josina responde: “Não poderia ter existido coisa melhor na minha vida, todos os finais de semana ele enchia um carrinho de alimentos e me dava para mim levar para a minha família”.

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