Manoel Freitas
Repórter
(fotos: Manoel Freitas)
A tribo indígena Xakriabá, a maior das etnias de Minas Gerais, que ocupa mais de 70% do território de São João das Missões, teve na noite de 11 de fevereiro de 1987 um de seus dias mais sangrentos. Um grupo de grileiros da terra indígena, localizada entre Itacarambi e Manga, no Norte de Minas, sob a liderança de Francisco de Assis Amaro, invadiu a aldeia Sapé. Por volta das duas horas da madrugada, arrombaram a casa do vice-cacique Rosalino Gomes de Oliveira e iniciaram um tiroteio. Rosalino, de 42 anos, e mais dois indígenas, Manuel Fiúza da Silva e José Pereira Santana, foram brutalmente assassinados.
A esposa de Rosalino, Anísia Nunes, grávida de dois meses, foi ferida com um tiro no braço. Seu filho, José Nunes de Oliveira, na época com 10 anos de idade, um kuhinan – criança, na língua dos nativos - foi obrigado a arrastar o corpo ensangüentado do pai. Dezoito anos mais tarde, em 2005, o valente kuhinan se tornava o primeiro prefeito índio de Minas Gerais.
Outro dos cinco filhos do casal, o professor Domingos Nunes, hoje com 36 anos, teve trajetória igualmente vitoriosa: foi eleito cacique com a morte, em 2003, daquele considerado uma das maiores lideranças indigenistas do país, o Cacique Rodrigão. Foi sob sua liderança, que - por sinal - além da conquista da prefeitura pelo irmão, Domingos assistiu quatro índios serem empossados vereadores em 2005, respaldado pelo fato – também - de 70% do eleitorado se encontrar em terra indígena.
A barbárie, encomendada por fazendeiros, na verdade elevava para nove o número de índios mortos naquele período. E, para marcar os 20 anos da chacina que ganhou repercussão internacional, já que pela primeira vez na história do Brasil foram condenados à prisão todos os acusados por um crime de genocídio, nos dias 10 e 11 de fevereiro, os Xakriabá, com o apoio do CIMI – Conselho Indigenista Missionário e da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, promovem em São João das Missões a Romaria dos Mártires da Terra Xakriabá, com a presença de representantes de nações indígenas de todo o Brasil.
15 PISTOLEIROS PARTICIPARAM DA CHACINA
No dia 11 de fevereiro de 1987, o atual prefeito de São João das Missões, José Nunes, testemunha ocular da chacina Xakriabá, após arrastar o corpo do pai do quarto onde foi fuzilado à queima roupa, dava início, verdadeiramente, a uma grande jornada, não marcada por sangue e vingança, mas conquistas lentas e progressivas. Após o bárbaro crime, seguindo a tradição Xakriabá, Rosalino, José e Manuel foram sepultados próximos de suas casas. O crime foi resultado de um processo sofrido deste povo para reaver suas terras, onde várias outras lideranças tombaram. Nada menos do que 15 pistoleiros participaram da chacina.
Dona Ercina Gomes de Oliveira, a mais velha da tribo: avô do prefeito e do cacique e a principal referência da etnia: sabedoria e contribuição aos povos indígenas reconhecidos pela Assembléia Legislativa de Minas
A LIDERANÇA DA FAMÍLIA
O pai do prefeito José Nunes, Rosalino Gomes de Oliveira, começou a exercer liderança na tribo a partir da disposição do seu povo em não abrir mão de suas terras. Foram quase três décadas de lutas, período marcado por disputas entre índios, posseiros e o governo de Minas Gerais.
De modo que, de acordo com os historiadores, a liderança de Rosalino foi forjada a ferro e fogo, porque agiam contra os interesses da tribo o contexto da ditadura militar, a negação dos direitos indígenas e toda sorte de perseguições. Em todas essas etapas, sempre manteve intenso diálogo com as comunidades indígenas, não deixando apagar a chama de seus ideais.
A índia mais velha da tribo, Ercina Gomes de Oliveira, que segundo noticiário do Fantástico, da Rede Globo, tem mais de 100 anos, é mãe de Rosalino Gomes e, portanto, avô do prefeito José Nunes e do cacique Domingos Nunes. Lúcida, é a principal referência de seu povo.
Dona de sabedoria incomum, em 2003, quando da morte do cacique Rodrigão, consolou a todos dizendo que a liderança indígena não havia morrido.
- Rodrigo não morreu, mudou para o céu – disse Dona Ercina com os olhos represando lágrimas, lembrando que criou seus filhos e netos com as lições que absorveu da natureza e, principalmente, “da escola dos Passarim”.
O JULGAMENTO
O julgamento dos acusados pela chacina Xakriabá, aguardado com grande expectativa pela imprensa nacional e sob pressão de entidades e lideranças indígenas de todo o país, foi realizado pela Justiça Federal em Belo Horizonte, em setembro de 1988. Os matadores foram condenados a 81 anos de prisão, sendo que o grileiro Francisco de Assis Amaro recebeu a maior pena: 27 anos. Germano Gonçalves recebeu pena de 20 anos e seis meses; Roberto Freire Alkimim e Sebastião Vidoca há 12 anos; Claudomiro Vidoca a dois anos e seis meses. Além de crime de genocídio, os assassinos foram condenados pelos crimes de lesões corporais, invasão de domicílio e formação de bando ou quadrilha.
RECONQUISTANDO O TERRITÓRIO
A aldeia Xakriabá foi fundada oficialmente em 1771, na margem esquerda do Rio São Francisco. No ano de 1979, o conflito fundiário pela posse do território indígena, de 46.414 hectares, teve um de seus marcos mais importantes, com a demarcação do território pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio, luta que teve início nos 60. Em 1989, a área foi homologada e mais de 90 famílias de posseiros retiradas da área indígena.
Em 1997, as suas aldeias deixam de fazer parte do município de Itacarambi, com a emancipação política de São João das Missões. Em maio de 2003, novo avanço para a etnia: metade do único distrito de São João das Missões, Rancharia, com 6.798 hectares, foi incorporado ao território indígena.
De acordo com relatórios do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, a luta pela terra sempre foi uma constante na vida da etnia. Indicam que, antes da chacina, os posseiros, indispostos com os índios, abandonavam as terras e os grileiros se apoderavam delas, vendendo-as tempo depois para grandes fazendeiros, que ampliavam suas propriedades.
Atualmente, dos 12.080 habitantes de São João das Missões, nada menos do que oito mil habitam suas 27 aldeias, ocupando mais de 70% de seu território. E, apesar desses avanços, a área corresponde hoje a apenas um terço do território original.
A ÚLTIMA VOZ
Historicamente, para evitar a completa extinção da tribo, os Xakriabá, pouco a pouco, foram abrindo mão de seus costumes. Tanto é verdade que o último nativo a falar fluentemente seu idioma, conhecido como Trinca de Ferro, morreu há 350 anos. Por sinal, é de sua autoria a imagem guardada no altar-mor da igreja de São João Batista, a sete chaves, de São João dos Índios, nome do povoado que, com o tempo, se transformou em São João das Missões.
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