Queimadas a serviço da preservação

Fogo controlado é usado no Parque das Sempre-Vivas para evitar estragos de incêndios

Manoel Freitas - Enviado Especial
05/06/2019 às 10:11.
Atualizado em 05/09/2021 às 18:58
 (MANOEL FREITAS)

(MANOEL FREITAS)

A Serra do Espinhaço, única cordilheira do Brasil, é uma das estruturas geográficas mais espetaculares de Minas Gerais, atuando como um grande divisor entre importantes bacias hidrográficas. Esse mosaico de vegetação singular, florístico sobretudo, compõe a paisagem e se reflete palmo a palmo nos 124 mil hectares do Parque Nacional das Sempre-Vivas, que entrelaça os municípios de Bocaiuva, Buenópolis, Diamantina e Olhos D’Água. Nesta segunda reportagem da série sobre o parque, publicada nesta Semana do Meio Ambiente, vamos mostrar ações de preservação desse ecossistema, como a estratégia do “fogo amigo”. 

Para proteger esse autêntico tesouro, a unidade de conservação foi criada em 2002 pelo Ministério do Meio Ambiente que, quatro anos mais tarde, aprovou o plano de manejo, documento elaborado a partir de diversos estudos científicos, com diagnósticos do meio físico, biológico e social – na verdade, um conjunto de ações necessárias para a gestão e uso sustentável dos recursos naturais em seu interior e entorno.

Todo esse esforço para preservar rica biodiversidade, em especial as Eriocauláceas – as sempre-vivas –, polinizadas pelo vento e exploradas economicamente. Essas plantas são de difícil cultivo e alto endemismo, como revelam os estudos feitos desde a criação da unidade de conservação na Serra Geral de Minas – uma riqueza ameaçada tanto pela coleta indiscriminada, comércio ilegal para colecionadores e pelo risco iminente do fogo, colocando muitas espécies em perigo de extinção.

Em função disso, o esforço do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em manter diálogo com os catadores de flores e contribuir para o permanente desenvolvimento de pesquisas neste território.

Esse complexo rupestre de altitude, basicamente quartzítico, mostra-se com grande riqueza e diversidade de espécies, prato cheio e desafio para a ciência, porque esses ambientes elevados, com afloramentos rochosos, serras e vales, entremeados por riachos e rios, ainda são pouco estudados. Tudo isso, ao som de aves endêmicas e ameaçadas de extinção, que dão o tom ambiente.
 
PORTAL
Na paisagem dessa porção da Cadeia do Espinhaço, o visitante ou pesquisador, tão logo chega ao parque, tem como portal a Serra do Galho do Miguel, que ocupa 90% da área.

Planalto com montanhas surgidas há mais de um bilhão de anos, a estrutura gigante sofre com erosão, uma vez que 50% do parque é composto por formações rochosas e os quartzitos acabam por se transformar numa areia muito branca, que caprichosamente cria um ambiente propício ao desenvolvimento das sempre-vivas.

Chamas que protegem a vida

“Fogo bom é fogo vida”. A frase pronunciada com emoção à reportagem de O NORTE pela cientista Vânia Regina Pivello revela o cerne do “Projeto Sempre-Vivas”. Nele, o elemento quase sempre apresentado como devastador e inimigo dos ecossistemas, é visto como ferramenta indispensável para a preservação do Cerrado.

A reportagem acompanhou a rotina de atuação da doutora (PhD em Environmental Technology pela Universidade de Londres) e a equipe, na realização de “queimadas controladas”.

O trabalho envolveu suporte da brigada de incêndio do ICMBio, pesquisadores da USP e de outras duas instituições – a Universidade Estadual Paulista e a Universidade Federal do Jequitinhonha e Mucuri.

O trabalho vem sendo realizado há três anos para evitar grandes incêndios, como os que têm ocorrido em outras áreas protegidas de Cerrado. Esse tipo de ambiente possui um grande acúmulo de biomassa, o que favorece a propagação das chamas. Por isso, a intervenção preventiva com o próprio fogo é tão importante e eficaz.

Titular no Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo, Vânia Regina coordena a pesquisa com o fogo usando ingrediente indispensável à ciência: a humildade. Ela ressalta que a pesquisa é, na verdade, um tripé. “Três universidades formam a parte científica; o ICMBio proporciona toda infraestrutura, então temos a área para trabalhar. Daremos nosso retorno, porque a pesquisa é que vai dizer o que é melhor para cuidar da biodiversidade, que é rica e que precisa de atenção; e a terceira parte, é a população que sobrevive dessas flores que estão se acabando”, observa.

Vânia Regina destaca que o desafio da ciência é proteger essas plantas “de um jeito que seja bom para os apanhadores de flores – porque é seu ganha-pão – e para o parque, porque se as flores se acabam, você mata a galinha dos ovos de ouro”. 

‘Cerrado sem fogo é loucura’

No “campo de batalha”, há a figura do gerente do fogo, que utiliza conhecimento e tecnologia para manter as chamas dentro da área prevista para que elas sejam realmente um “fogo amigo”.
Um dia antes da queimada, Daniel Rios de Magalhães Borges, analista ambiental do ICMBio, traçava as ações do grupo. “A gente tem toda uma estrutura institucional voltada para o incêndio, uma hierarquia, brigadistas, chefe de esquadrão e o gerente, a quem compete liderar os esquadrões dentro da unidade de conservação”, explica.

“Falar do Cerrado sem fogo é uma loucura”, afirma Daniel, o que pode assustar muita gente. “Eu brinco que, na época do Ibama, a gente tinha ainda uma cultura muito forte do fogo zero, de jeito nenhum, e, às vezes, fogo de raio durante uma chuva saíamos correndo para apagar. Ou seja, fazíamos um planejamento de tragédia, porque vai acumulando combustível, acumulando combustível, acumulando capim e aí um dia que entrar numa seca, não segura mais nada. Ele entra nas matas, nas veredas, queima as nascentes, tudo que não pode queimar, porque a gente tem vegetação sensível ao fogo, resistente ao fogo e dependente do fogo”, afirma Daniel.

Enquanto as chamas ainda ardiam entre a Serra do Urubu e diversos capões onde nascem rios importantes, a atual chefe do Parque Nacional das Sempre-Vivas, a bióloga Paula Leão Ferreira, explicava a importância da pesquisa com as chamas controladas.

“A pesquisa vai avaliar o manejo do fogo na vegetação, os impactos positivos e negativos, porque aquela área que não queimou (apontando) é como se fosse um termômetro. O que vai acontecer com a vegetação que os pesquisadores avaliaram antes e depois, o que sobrou, ou seja, o banco de sementes, as cinzas que dizem também a intensidade da queima: cinza branca, quando temos a máxima combustão, e preta, porque o fogo passou rápido”, ensina.

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