Após três anos do crime na Creche Gente Inocente, crianças têm que lidar com os traumas e lembranças

Christine Antonini
O NORTE
03/10/2020 às 06:50.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:42
 (ARQUIVO HOJE EM DIA)

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“O homem (Damião) chegou falando ‘venham comprar sorvete, venham todos vocês’. Então, eu fui lá ver e na hora ele soltou a bomba e tudo explodiu. Foi muito rápido. Quando explodiu, ficou tudo escuro. Depois, senti minha pele doendo, tudo doía. O fogo estava em nós e eu não sabia o que fazer. Lembro que chorei demais”. O relato é feito por Rhuan Emanuel, um dos sobreviventes da tragédia na Creche Gente Inocente, em Janaúba. Três anos já se passaram, mas as memórias ainda estão muito claras na cabeça do menino que, na época, tinha apenas 3 anos.

O dia 5 de outubro não será mais um dia comum para os moradores de Janaúba. Para os que sobreviveram, é considerada um segundo aniversário, a comemoração de um renascimento. Para outros, que perderam filhos, esposa, mãe, é uma data de lamentar a perda e tentar encontrar um novo caminho. Os sobreviventes carregam, além das cicatrizes na pele, a triste lembrança de um dia que mudou completamente a vida dos gorubanos.

O ataque praticado pelo vigia da creche, Damião Soares, vitimou dez crianças, duas professoras e uma auxiliar, e deixou dezenas de feridos graves. O autor do incêndio também morreu.

As crianças que sobreviveram ao incêndio tinham, na época, entre 2 e 4 anos. Apesar da pouca idade, lembram com detalhes o que ocorreu no dia da tragédia. O menino Rhuan teve 30% do corpo queimado. Ainda precisa usar a malha compressiva para queimaduras que serve para ajudar no processo de reestruturação da pele. Ele também faz tratamento em Montes Claros e no Hospital João XXIII, em BH, que é referência em queimados em Minas Gerais. 

Além das queimaduras, o garoto não consegue falar direito, pois teve complicações nas vias aéreas, garganta e língua. Dayana Cristina Dias conta que o filho, apesar do trauma, é uma criança alegre. “Ele gosta de ir para escola para brincar com os coleguinhas. O maior medo dele é o fogo. Devido às queimaduras na pele, ele não pode tomar muito sol. A vida dele não é a mesma de antes, mas tentamos fazer o possível para oferecer isso a ele”, afirma Dayana. 

O medo de Rhuan é o mesmo que dos demais sobreviventes: o fogo. Eloá, que na época tinha 4 anos, não pode nem ver fumaça. Ficar na cozinha enquanto a mãe prepara o almoço então, nem pensar. “Eu estava na escola, no pátio, tomando banho de mangueira. Aí chegou o malvado (Damião) e botou fogo. Lembro das professores pegando fogo e correndo com as crianças no colo. Quando saí do hospital, não conseguia falar com ninguém, parecia que não tinha voz. Meu pai fazia brincadeira comigo para ver se eu animava, mas não conseguia sorrir, não queria brincar nem falar nada. Meu cabelo queimou e, aos poucos, ele está nascendo”, conta Eloá Santos Moreira. 

A mãe de Eloá afirma que admirou a garotinha aceitar dar entrevista para a reportagem de O NORTE, uma vez que a filha não gosta de falar sobre o assunto. “Ela não consegue se entrosar com os meninos da escola. Após a tragédia da creche, Eloá não é a mesma. Ficou retraída, com medo de tudo. Quando eu varro o quintal e coloco fogo nas folhas, ela não fica perto, o coração dela acelera”, afirma Graciele Silva Moreira.

Já Ycaro Rafael, hoje com 6 anos, não consegue falar sobre aquele dia. A mãe do menino, Elisângela Correa, diz que ele inalou muita fumaça e, por isso, faz tratamento nos pulmões para reduzir a alergia. “Depois do contato com as chamas, Ycaro se tornou alérgico ao calor e desenvolveu um tipo de síndrome que ainda não sabemos do que se trata, mas está ligada ao pânico. Se ele vê fogo, logo grita”, pontua.

“Quando saí do hospital, não conseguia falar com ninguém, parecia que não tinha voz. Meu pai fazia brincadeira para ver se eu animava, mas não conseguia sorrir. Meu cabelo queimou e, aos poucos, ele está nascendo”. Eloá Santos Moreira
“Foi muito rápido. Quando explodiu, ficou tudo escuro. Depois, senti minha pele doendo, tudo doía. O fogo estava em nós e eu não sabia o que fazer. Lembro que chorei demais”. Rhuan Emanuel


Sem culpado, sem justiça, dizem pais
Para as famílias que perderam entes queridos no incêndio criminoso na Creche Gente Inocente, em Janaúba, não poder culpar alguém traz um sentimento de injustiça. Foi Damião Soares, guarda da instituição, que ateou fogo no local. Mas ele também morreu queimado. Porém, há outras questões envolvidas, como a escola não possuir alvará de funcionamento do Corpo de Bombeiros. Muitos pais questionam essa condição e se a tragédia poderia ter sido menor se houvesse equipamentos contra incêndio no local.

Outro ponto abordado pelos familiares é que o servidor Damião apresentava problemas psiquiátricos e já havia sido afastado por causa disso. Quem trabalhava com o autor conta que ele fazia uma série de ameaças, mas nada específico. 

Muitas mães preferem não falar sobre o assunto. Os quatro filhos de Luana Ferreira de Jesus estavam na escola no dia do incêndio. Ana Clara, que era irmã gêmea de Vitor Hugo, não sobreviveu. “Não consigo expressar o que sinto. É muita dor”, resume Luana. 

As famílias afirmam que, mensalmente, a Prefeitura de Janaúba paga R$ 1 mil para cada uma, como um adiantamento da indenização cujo processo ainda está na Justiça. Porém, o valor é considerado baixo e os pais alegam que só serve para ajuda de custos com remédios, tratamento e viagens médicas.
 
AJUDA NACIONAL
As famílias das vítimas buscam transparência sobre o dinheiro arrecadado com doações e eventos. “O movimento SOS Gente Inocente arrecadou cerca de R$ 908 mil”, disse Jorge Barreto, promotor de Justiça.

Ainda em 2017, diversos brasileiros, inclusive artistas, aderiram à campanha para arrecadar fundos. Foi aberta conta bancária e, de acordo com o promotor, os R$ 908 mil são distribuídos conforme cronograma do Ministério Público. 

A cada dois meses, as vítimas com lesões graves ganham dois salários mínimos. As famílias que perderam algum familiar recebem três salários, quem teve sequelas, um e meio salário. Além disso, nos meses pares, as famílias que tiveram óbitos recebem quatro salários mínimos, sendo três pagos pelo SOS e um pela prefeitura.

ASSOCIAÇÃO
Um dos símbolos da tragédia é a professora Heley Abreu. Para tentar salvar o máximo de crianças que podia, a professora, de 43 anos, acabou se queimando gravemente – teve 90% do corpo afetado – e inalando muita fumaça, e não sobreviveu. A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Creche Municipal Gente Inocente de Janaúba (AVTJANA) é presidida pelo marido de Heley, Luiz Carlos Abreu.

Segundo ele, a associação dá suporte em consultas médicas e medicamentos para as crianças. O dinheiro é oriundo de campanhas promovidas pela instituição. “Toda arrecadação de ordem material, como roupas, alimentos e brinquedos, é destinada diretamente para as famílias. Já a ajuda financeira é repassada por meio da Justiça, devido a exigência do Ministério Público”, esclarece o presidente.

A Prefeitura de Janaúba foi procurada para falar sobre o assunto, mas não respondeu até o fechamento da edição.

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