União pela vida do São Francisco

Comunidades debatem e fazem rituais pela recuperação das águas da integração nacional

Manoel Freitas
13/06/2019 às 07:57.
Atualizado em 05/09/2021 às 19:05
 (MANOEL FREITAS)

(MANOEL FREITAS)

Comunidades tradicionais que vivem às margens do rio São Francisco e que dependem dessas águas para a sobrevivência se deram as mãos, deixaram as diferenças de crenças de lado e tentaram encontrar formas de proteger o rio da integração nacional.

Em Januária, no último fim de semana, o 5º Encontro de Articulação Popular São Francisco Vivo apontou a expansão sem limites do agronegócio, da mineração e do desmatamento, que acarreta assoreamento e diminui o nível das águas, como o principal fator de agressão ao curso d’água.

O movimento nacional surgido em 2005 – quando chegou a reunir 300 organizações em defesa do Velho Chico – busca promover iniciativas de revitalização a partir da ação de pastorais, movimentos sociais e comunidades tradicionais. Dentre elas, os povos indígenas das etnias Pataxó Hã hã hãe, Xakriabá, Pankará, Kariri-Xocó, dos cinco estados banhados pelo São Francisco.

Na plenária, participaram representantes de 56 organizações de povos indígenas, quilombolas, geraizeiros, catingueiros, de fundos e fechos de pasto, pescadores, pesquisadores, pastorais e de grupos urbanos das quatro regiões da Bacia Hidrográfica do São Francisco, que teve como base a Mitra Diocesana de Januária.

Mais de 18 milhões de brasileiros dependem das águas do rio, contaminadas por rejeitos minerários, de indústrias e esgotos domésticos. Situação que contribui para a morte do curso d’água que banha seis estados do país – percorre 2.700 quilômetros e banha 57% do semiárido brasileiro.
 
RITUAIS
No domingo, sob sol do meio-dia, depois de manifestação que saiu da Mitra Diocesana, foram realizados rituais e abraços às margens do rio. A reza e os cantos foram marcados pelo som de maracás, chocalho indígena empunhado não apenas pela cacique Pankará e os demais indígenas, mas também por Dom José Moreira da Silva, bispo diocesano de Januária.

“Nós, povos indígenas, não iniciamos essa batalha agora de defesa do Velho Chico. Há séculos as comunidades tradicionais lutam, resistem contra o desmatamento, a pesca desgovernada, os grandes piscicultores”, afirma em tom emotivo Lucélia Leal, cacique do Povo Pankará, terra indígena Serrote dos Campos, em Itacuruba, Pernambuco.

“A cada dia o rio sofre mais com as ações, as agressões e, mesmo assim, segue o seu percurso, batalha em que alguns tombam, voltam a ser plantados na terra, e os mais jovens seguem com ela adiante. Esse é o nosso legado: a gente luta de há muito porque, se continuar do jeito que está, o destino dele é a morte”, lamenta Lucélia.

A cacique do Povo Pankará indaga: “se é a água dele que banha o nosso território, como a gente vai viver sem ele? Por isso temos que levantar todos os dias prontos para a batalha, pois não há vida sem água e porque somos os legítimos guardiões do São Francisco”, ressalta.

Dos vapores, só resta saudade
Na beira do cais, contemplando as águas castigadas do Velho Chico, o comerciante José Cavalcanti, “caminhando para 70 anos”, estava cheio de recordações.

“Até 1965 ele (o rio) estava navegável. Isso aqui era cheio de comandantes de branquinho, da Marinha, pois nada menos do que 32 vapores atestavam que o rio estava mais vivo do que nunca. Pelo menos cinco encostavam todos os dias no cais aqui de Januária”, conta, saudosista.

Cavalcanti lembra que, à luz de lampiões, alguns navios ficavam até um mês descarregando querosene, sal e sabão que vinham do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, e levavam grande parte da produção da região, inclusive de Montes Claros. “Uma verdadeira correnteza, e hoje não tem mais força, porque a natureza foi maltratada, mexeram com ela”, lamenta.

Essas histórias são fundamentais para mostrar a importância do rio para a comunidade que dele depende, na avaliação de Dom José Moreira da Silva, bispo diocesano de Januária. Por isso, a Diocese “abriu os braços com alegria para a realização do 5º Encontro de Articulação Popular São Francisco Vivo, porque essa é também uma missão da Igreja e eu não posso pecar por omissão”.

“Esses povos são, na verdade, a nossa história. Se eu não a conhecer e reconhecer a história desses povos, não tenho como dar um passo a frente, pois para andar para frente, nesse mundo globalizado, é preciso saber o passado”, afirma o bispo.
 
CONTINUIDADE
Em nota, os organizadores do evento disseram que “desafiados e confiantes, olhamos para trás, para os aprendizados dos 14 anos de luta da articulação e vemos no horizonte a necessidade de, com mais competência, promover a mobilização social e avançar urgentemente na luta pela vida e dignidade dos humanos e da natureza da grande Bacia do Velho Chico”.

Na verdade, a chamada “Carta do São Francisco” aponta que “o fracasso da transposição de águas do São Francisco dá mais razão às críticas que fazíamos ao projeto e atesta sua penúria, quadro refletido em frase de uma jovem participante do encontro, segundo a qual o Velho Chico pede socorro, pois está sendo usado para envenenar seu povo”.

Alertam para o que chamam de “sofrimento mental nas comunidades afetadas e descrentes, que se constitui em grave problema de saúde pública”. Por outro lado, o documento elaborado após a plenária lembra experiências exitosas de comunidades ribeirinhas, como revitalização de rios e afluentes.

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