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Quinta-Feira,14 de Agosto
Entrevista

Entre história e tradição: uma guardiã da memória de Montes Claros

Virgínia de Paula mantém viva a herança cultural que moldou a cidade

Adriana Queiroz*
genteideiascomunicacao@gmail.com
Publicado em 12/08/2025 às 19:00.

Às vésperas das Festas de Agosto, quando Montes Claros se veste de tradição e memória, Virgínia, filha do médico, historiador e referência na construção da memória montes-clarense Hermes de Paula, revive, na “Chacrinha”, histórias que misturam cultura, política, arte e hospitalidade. Mais que um lar, a casa foi palco de decisões importantes para a cidade, abrigo de artistas e ponto de encontro para catopês, marujos e seresteiros. Hoje, ela luta para preservar esse espaço como um santuário da identidade norte-mineira.

Virgínia, formada em inglês pelo Centro Cultural Brasil Estados Unidos, obteve o First Certificate de Cambridge e estudou na Cultura Inglesa de Belo Horizonte. Ela também fez um curso de verão na Internacional House de Londres e ministrou aulas particulares em sua residência.

“Minha atuação na cidade é mais no voluntário. Fui presidente do primeiro Cine Clube e também participei do segundo cine clube e do grupo que fazia filmes de curta-metragem. Trabalhei nas equipes de dois filmes de Carlos Alberto Prates Correia. E na produção do curta, “Anibal, um carroceiro e seus marujos” de Paulo Henrique Souto. Co-fundadora da Sociedade Norte Mineira Protetora dos Animais, tendo sido presidente da entidade. Foram vinte e cinco anos de trabalho árduo pelos animais. Comecei a escrever crônicas e textos com regularidade a partir de 2004. Hoje sou membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros”, disse.
 
Virgínia, como é para você carregar o nome e a história de Hermes de Paula, uma figura tão marcante para a cultura local?
Carrego este nome com muito orgulho, no bom sentido da palavra. Gostaria de poder fazer mais do que somente carregar seu nome. Venho tentando.
 
Que lembranças mais vivas você guarda da época em que seu pai vivia ali?
A casa cheia de gente de todas as origens, e todas sendo recebidas com a mesma alegria. Meu pai era feliz recebendo todos, abrindo as portas para todos.
 
Como a casa se relaciona com a história da cidade? Que personagens e momentos importantes passaram por ela?
Meu pai participou praticamente de tudo que chegou para nós na medicina e na cultura. Quando a ideia não vinha dele, como, por exemplo, a chegada da televisão, ele participava de alguma forma, dando sua contribuição. Quando, no Rotary Club, (ele era rotariano) decidiram que seria importante ter um colégio aqui com curso científico, como falavam naquele tempo, ele loga se engajou no projeto, ajudando a criar a Sociedade Amigos do Progresso, que trouxe o Colégio São José. Partiu de sua cabeça a construção de um clube campestre, o Pentáurea. Assim como a construção da capela do Rosário, visto que ousaram derrubar a antiga. Sem capela, acabaria a festa. Ele tomou a frente do projeto. Também foi na sua cabeça que surgiu a vontade de trazer uma escola de medicina para cá. Seu sonho se tornou realidade. Eram muitas reuniões acontecidas aqui na Chacrinha em benefício da cidade. Lembro do enfermeiro americano Charles Scofield, chegando com a proposta da criação do Ippedazar. Tornou-se vice-presidente do Ippedazar, entidade que deu origem ao atual SUS. Decisões importantes eram tomadas aqui na sala de visitas. Se nossas paredes falassem, como teriam histórias para contar.
Foi no fundo do nosso quintal que todos os fogos de artifício e arcos para ornamentar as ruas no centenário foram feitos. Ele contratou profissionais que vieram do Rio e aqui ficaram por longo tempo preparando. E como esquecer o artista Jackson, mímico famoso na época, que fez apresentação na nossa sala de jantar!
 
A casa também era aberta para festas folclóricas, não é?
Sempre cheia de catopés, marujos, caboclinhos, foliões, pastorinhas e seresteiros. Chegou a criar um grupo de seresta que ensaiava na Chacrinha. Isso o levou a fundar o Centro de Tradições Mineiras, com sede em sua residência.
Era como um clube de festa gratuito. Quem quer que fosse que precisasse de um espaço maior para, por exemplo, fazer uma festa junina, pode saber que viriam dançar aqui. E meu pai ainda marcava a quadrilha.
Faltava lugar para um banquete? Aconteceria aqui. Faltava um lugar para hospedar alguma personalidade? Viriam para cá. O número é alto. Teve um cônsul dos Estados Unidos, teve o João de Sá Coutinho, cônsul de Portugal, teve o grande ensaísta e professor Oscar Mendes, o bispo de Jequié, o cantor Wanderley Cardoso, e nada menos que Roberto Carlos, rei da Jovem Guarda.
Fazia coquetéis e jantares para artistas de cinema e da música, como o ator Paulo José, Venilton Santos, Eliane Macedo, o violonista Baden Powell. Este último veio ainda adolescente. Arrasou seu violão aqui na sala. Virou estrela internacional depois. A casa da Chacrinha foi usada como camarim para atores e atrizes do filme Cabaré Mineiro. Tania Alves jantava aqui após as filmagens no antigo salão paroquial. A casa também participou do filme Os Marginais, de Carlos Alberto. Conto com mais detalhes no meu livro “Chacrinha: 50 anos.”
 
Quais os desafios que tem enfrentado nesse processo de transformar um lar em um espaço de memória?
Tudo que anseio é que este santuário seja preservado. Não sei se seria espaço de memória, especificamente. Seria mais uma retomada do que era quando faleceu, achando que teria continuidade. Seu Centro de Tradições Mineiras. Foi bem claro quanto a isso, dizendo que poderia morrer em paz. Podia não.
A situação é gravíssima. Muitos dizem ser impossível. Sigo rezando e cantando que “o mundo verá uma flor brotar do impossível chão.” Milagres acontecem. Eu creio. Mas precisaria de apoio dos que entendem a necessidade da preservação do patrimônio histórico.
 
Você cresceu imersa na vida cultural da cidade. O que mudou ao longo dos anos?
A cidade cresceu muito. Além do imaginável. Então, são muitos os habitantes de outras regiões, não ligados ao que é nosso. E influenciaram muitos nativos, que preferem seguir o estilo de vida de Belo Horizonte, até achando que folclore é bobagem. Adeptos do modismo do desapego não se incomodam com a destruição do que é autenticamente nosso. É bom lembrar que, mesmo antes, essa destruição acontecia. Meu pai lutou para a preservação da primeira casa da cidade, em vão. Mas, havia muita atuação na área cultural por parte de Rotary, onde todos se conheciam. Muitos, sem ligação com política, se uniam para trazer, por exemplo, a primeira escola de inglês. Eu não vejo hoje grupos interessados e atuantes na área da preservação. Espero que surjam ou Montes Claros será apenas uma cidade grande como outra qualquer, sem alma, sem história.
 
Quais figuras ou momentos da história cultural de Montes Claros você acredita que ainda são pouco lembrados ou valorizados?
De estalo me vem a figura de Zezinho da Viola. O maior violeiro do mundo, tenho certeza de que sim. A única gravação dele foi feita por meu pai aqui na sala, no seu gravador de fitas de rolo. Ele não poderia ser esquecido. Deveria estar no Museu da Imagem e do Som, o último projeto de meu pai, que até hoje não saiu do papel.
 
O que acha que a juventude precisa conhecer sobre o passado da cidade para valorizar mais o presente?
Precisa conhecer a nossa história. O nosso Instituto Histórico e Geográfico tem um acervo riquíssimo. E edita revistas anualmente.
Que visitem o Instituto, que saibam da sua existência. E que leiam “Montes Claros, sua História, sua Gente e Seus Costumes”, de Hermes de Paula, que estará disponível on-line em breve. 
 
Se pudesse escolher um objeto ou memória que represente a alma da sua casa e da sua história, qual seria?
Seu armário do antigo consultório estava cheio de pipetas e material que usava no atendimento médico. Guardo o armário na sua antiga biblioteca. Não podemos esquecer que era também médico sanitarista, dos bons. Acredita que guardava na geladeira vacinas para servir a pessoas que chegavam na madrugada, ofendidas de cobra, escorpião ou “cachorro-doido”? Era um médico que aceitava troca… Era um senhor da roça, pobre? Pois ele aceitava um queijo como pagamento. Mas nem isso era sempre preciso. Médico por vocação. 
Mas as roupas dos dançantes da festa de agosto, os capacetes, ou um violão de serenata, também se parecem com ele.

*Entrevista concedida no dia 4 de julho de 2025

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